“Quem tem medo de Xica Manicongo?” é o tema do enredo da Paraíso do Tuiuti para o Carnaval de 2025, que será levado ao sambódromo no desfile desta terça-feira (4). A escola contará a história de Xica, a primeira travesti não indígena do Brasil, que foi executada pela Inquisição. O samba traz a linguagem em pajubá, e a comissão de frente será composta por mulheres travestis. Este enredo é uma grande conquista para o movimento do samba, pois o carnaval sempre foi um espaço de resistência e celebração do povo, dando voz e visibilidade aos marginalizados pela sociedade.
Aurora Enibê, de 24 anos, natural de Porto Alegre e atualmente, moradora da Gamboa, Zona Portuária do Rio, integra a comissão de frente da Paraíso do Tuiuti. Ela compartilha como o enredo a tocou desde o primeiro momento. “Fala sobre a minha história, querendo ou não. Quando falamos de Xica, estamos resgatando a ancestralidade das travestis e trans – das que vieram, das que estão, das que virão. Mas minuciosamente ali nos pontos percebemos como o enredo aborda a transfobia estrutural e inconsciente”, reflete a artista.

“Quem é que não tem medo? São muito poucas pessoas, dá para contar nos dedos. Porque a situação é babado. Nossa realidade é bem diferente da vivência de muitas pessoas cisgênero. E é isso que eu digo sobre os carnavalescos. Eles estão ali, fazendo o trabalho agora, e no próximo ano estarão fazendo de novo?”, Aurora expõe os acessos à população de trans e travesti.
É a primeira vez que Aurora entra na Cidade do Samba e se envolve no universo do carnaval, participando de ensaios de rua, ensaios técnicos e, finalmente, entrando na Sapucaí. Ela conta que toda a experiência foi revigorante e, por um momento, conseguiu olhar para si mesma e refletir sobre tudo o que viveu para chegar até ali.
Olhando as oportunidades, a artista comenta sobre a “Lista Trans na Sapucaí”, uma iniciativa que visa oferecer ingressos para pessoas trans, travestis e não binárias em eventos culturais, tornando os espaços mais inclusivos. Ela também destaca a importância de reconhecer a transexualidade da identidade trans, que abrange todas as ‘corpas’ (conceito elaborado por pessoas travestis) e subjetividades. Isso ajuda a romper com os estereótipos sociais que limitam a identidade de travestis, permitindo que outras identidades, como as pessoas trans masculinas e não binárias, também sejam reconhecidas e celebradas em sua existência. Outro ponto mencionado é a criação de uma “bolha” que faz com que se pense que pessoas travestis e trans só podem ocupar um único papel na sociedade. Além disso, há a associação da imagem da travesti com a prostituição, mas isso ocorre justamente pela falta de oportunidades.
“Para além de vogue, das performances com carão, de ser sexy e mais feminina, eu sou dançarina e atriz, eu danço jazz funk, contemporâneo, balé clássico e estilete”, complementa Aurora sobre seu talento e sua carreira artística.
De acordo com a artista, as pessoas negras e indígenas estão à margem da sociedade. Portanto, não há ninguém mais capacitado, ninguém melhor para produzir, agir e falar sobre o que precisa ser transformado na sociedade do que nós mesmos.
“Que sejamos tratadas como humanas, uma mulher comum, uma travesti, enfim, como pessoas que somos, que nos relacionamos com outras pessoas, independente do que que a gente tem no meio das pernas”, destaca Aurora sobre a humanização de corpos transexuais e travestis.
Resgate da essência do carnaval
O pajubá tem suas raízes no iorubá, uma língua africana, e surgiu como uma maneira de comunicação segura, permitindo que se expressem sem que outros compreendam facilmente o que está sendo dito. Além disso, a vivência dos corpos trans e travestis é marcada por povos de rua, que se conectam com figuras como a pomba-gira, reconhecendo os atravessamentos e encruzilhadas que moldam suas existências.
Como Aurora bem ressalta, no maior espetáculo da terra, o desfile das escolas de samba, a primeira rainha de bateria do Brasil foi a travesti Eloína dos Leopardos, em 1937, pela Beija-Flor de Nilópolis. “Uma história de reparação que está sendo resgatada, e nós estamos aqui para contá-la junto”.
O Carnaval tem como característica ser construído por pessoas periféricas, por aqueles que estavam à margem, buscando sair de uma realidade difícil para encontrar um espaço de conforto, sobrevivência e celebração da vida. “O Carnaval é celebrar a vida tanto dos vivos quanto dos mortos, porque representa nossa ancestralidade”, afirma Aurora.


Discurso de Erika Hilton
O discurso da deputada federal Erika Hilton no último ensaio técnico da escola teve um grande impacto nas vivências e potências de pessoas trans e travestis. Desde o anúncio do samba-enredo, a representante se posicionou sobre a importância e a responsabilidade de falar sobre Xica Manicongo. Como porta-voz do povo, a parlamentar trans representa a comunidade LGBTQIAPN+ e também levanta debates e políticas públicas voltadas para as margens da sociedade, na frente da luta contra a escala de trabalho 6×1.
Ao ouvir o discurso, a Aurora disse da emoção que sentiu: “Eu tô chorando à beça, abraçada na minha irmã Baby Lua”, comenta sobre a foto que teve grande alcance. E continuou: “A gente não quer destruir, queremos construir juntos, uma política melhor para que todos os corpos possam viver minimamente bem e saudáveis”, complementa.
“Se estou aqui hoje, é porque passei por muita coisa”, diz Aurora, refletindo sobre a história por trás de cada enredo. Nesse contexto, ela destaca a Operação Tarântula, uma perseguição que ocorreu durante a ditadura militar brasileira. Perseguições, apagamentos e diversas formas de exclusão são mencionadas, revelando que, até hoje, seu corpo continua sendo alvo de fetiche e perseguição nas ruas. No entanto, ela questiona: quem realmente quer conviver comigo?
Aurora destaca a importância de conviver, ouvir e dar visibilidade às travestis e aos transexuais, porque isso transicionar as mentes das pessoas. Ela reflete sobre o quanto poderia estar grandona, junto com suas irmãs [suas amigas travestis e trans], que enfrentam o preconceito e as dificuldades cotidianas. E ainda, enfatiza que são elas que enfrentam as dificuldades e, por isso, são as mais qualificadas para apontar o que precisa ser melhorado. A mudança e o progresso vêm de dentro da comunidade, que se fortalece coletivamente para lutar por si mesma, numa espécie de nutrição e engrenagem contínua.
“O carnaval pode acabar, o enredo passar, mas eu vou continuar sendo Xica Manicongo!”, exclama Aurora.

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