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OPINIÃO – A quem interessa um jornalismo sanguinário?

A incansável questão dos veículos da grande mídia que seguem criminalizando as favelas e fechando os olhos para o que há de positivo
Foto: Divulgação / Record TV Rio

Texto de Rennan Leta
1995, RJ. Jornalista. Escritor e poeta, autor do livro Palavras do Mundo. Comunicação é sua área de investigação com ênfase em movimentos sociais, periféricos e favelados. Cria da comunidade Mata Machado, é fundador e CEO da Casa Favela. @rennanleta em todas as redes sociais.

O jornalismo tradicional carece de uma ocupação favelada. Começo com essa afirmação pois, em pleno 2023, é incabível que o foco de alguns programas e até mesmo emissoras ainda seja criar sensacionalismo e estereotipar as favelas. A relação da grande mídia com as favelas, tema do meu TCC “O IMPACTO DO JORNALISMO COMUNITÁRIO NAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO: OS CASOS EXEMPLARES DO VOZ DAS COMUNIDADES E DO FALA ROÇA” e de tantos outros trabalhos, continua a seguir padrões que não cabem mais nos dias atuais.

Na última segunda-feira (27/03), o jornal Balanço Geral, da TV Record, apresentado pelo Tino Júnior, exibiu ao vivo um lamentável acontecimento em Guadalupe. Um caminhão de carga foi roubado e traficantes da região estavam distribuindo as mercadorias. A reportagem fez a Polícia Militar agir rapidamente, com o envio do blindado Caveirão para o local, resolvendo a questão e começando um intenso tiroteio. Entretanto, o novo episódio dessa relação entre o jornalista que vive no ar condicionado e a realidade das favelas não parou por aí: o helicóptero subordinado ao apresentador – intitulado de “Mosquito Fofoqueiro” – ficou por mais de duas horas sobrevoando o local exibindo o furto, a chegada da polícia, a troca de tiros, a fuga dos bandidos pela mata, pessoas andando na rua e outras dezenas de informações e imagens que serviam um prato cheio para o programa criar sensacionalismo e dizer que o bairro, que tem mais de 47 mil moradores e mais de 3 milhões de metros quadrados, se resume à violência mostrada por eles.

Após ver – contra a minha vontade, diga-se – essa cobertura jornalística, eu fiz a seguinte postagem no Twitter: ”O programa do Tino Junior ficou 2h mostrando imagens de helicóptero em Guadalupe. Não é possível que a visão editorial da Record seja só isso. Não tem NADA produtivo pra mostrar? Não tem NADA no Rio de Janeiro, nas favelas, nenhuma ação que precise de visibilidade?”. Uma indagação que vem pautada não apenas por ser a minha área de pesquisa acadêmica, mas pela experiência de ter feito parte da equipe de jornalistas do Voz das Comunidades por mais de três anos, vivendo a fundo a cobertura sobre as favelas do Rio de Janeiro – no território, não do ar do escritório. Ainda assim, o questionamento foi respondido com uma série de ataques do Tino Junior, que repetiu diversas vezes o meu nome ao vivo por mais de cinco minutos, como se eu fosse contra à exposição dos criminosos e, obviamente, sem eu ter o direito de resposta. Além disso, o apresentador postou em seu Twitter, o que gerou uma onda de ataques direcionados a mim, ao Voz e a outros comunicadores de favela, feitas por contas fakes e fãs do programa e do Tino.

Essa conduta jornalística de desumanização das faveladas ajuda a perpetuar a visão de que a favela é um território marginalizado e todos os seus moradores são “bandidos”, ainda que nunca tenham entrado para o tráfico. É importante lembrar que essa desumanização, que fortalece o racismo estrutural no Brasil, já ocorria no Rio de Janeiro pré-Abolição e continuou quando, a partir de 1897, as favelas surgiram. O jornalismo comunitário, que parte de dentro da favela, começou a propor a mudança de visão midiática sobre esses locais. Na base da cobertura da grande mídia é possível observar a falta de conhecimento territorial e a necessidade de mostrar o óbvio – que a criminalidade existe. As matérias, geralmente, são pautadas pelos releases da própria polícia militar, o que gera a invalidação das falas dos moradores ou, muitas vezes, estes sequer são ouvidos sobre toda a situação que aconteceu. Isso não vem de agora. É fato que o crime existe, tanto na favela quanto fora dela. Inclusive, com conhecimento e, às vezes, aval do Estado. Qual é o objetivo, então, de se mostrar por mais de duas horas algo que todos já sabem, enquanto deixa invisível ações positivas que precisam de um impulsionamento?

Entre 2005 e 2006, no artigo ‘Comunidade e humanismo prático: a representação da periferia no Rio de Janeiro’, Raquel Paiva e Gabriela Nóra listaram 645 matérias sobre favelas do Rio de Janeiro, das quais 498 (77,2%) traziam um olhar sobre a violência e tráfico de drogas. Em 2019, os principais jornais impressos do Rio de Janeiro – O Dia, Extra, O Globo e Meia Hora – noticiaram as favelas em suas respectivas capas 84 vezes em 92 dias, sendo 80 de forma negativa e apenas 4 de forma positiva, como mostrou o jornalista Michel Silva em seu trabalho ‘Quem vê capa não vê coração’.

Portanto, isso precisa mudar. Se o jornalismo tradicional continua virando o rosto para o que há de bom e reforçando estereótipos e sensacionalismo nas favelas, o trabalho desenvolvido nos veículos de comunicação comunitária sai em defesa do povo e do território. Resguardar a comunidade para que os serviços essenciais cheguem é uma atividade diária nas redações que, muitas vezes, viram locais de atendimento social para os moradores. A ajuda vai além da denúncia e das manchetes; é uma ação política. Ação que gera cultura, educação e projeção para os moradores. 

O trabalho do jornalismo comunitário, realizado no Voz das Comunidades, Fala Roça, Maré de Notícias, Frente CDD etc, mostrou que, dentro das favelas, há muitas histórias e muito conteúdo para além dos problemas de violência. Esporte, cultura, empreendedorismo, comunicação e tecnologia ocupam espaços que sempre foram dados somente à barbárie. Ficou evidente que não basta apenas o conhecimento sobre lide, release, título, fotografia, edição de vídeo, entre outras técnicas do jornalismo tradicional: o jornalista que quer cobrir as favelas deve se preparar e ter a consciência de que as notícias contêm todo um cenário social que importa na abordagem, na apuração e na publicação de cada matéria. E que a diversidade das pautas importa muito.

Por fim, reafirmo: falta mais favela na grande mídia, por mais que os veículos de comunicação comunitária venham ganhando cada vez mais espaço de visibilidade, sobretudo na internet. A rede aberta de televisão ainda tem um alcance muito maior e mais efetivo. Quantas pessoas da favela estão apresentando algum jornal na TV aberta? Quantos editores da TV aberta são favelados(as)? Quantos produtores? São questionamentos pertinentes e que precisamos, sim, reivindicar. As nossas histórias não podem ser contadas sempre por alguém de fora, que muitas vezes nunca pisou no território e não tem compromisso nenhum com o que aquela fala vai gerar. Não podemos mais normalizar que ataques sejam feitos em rede aberta, para milhões de pessoas, sem que tenhamos ao menos o direito de resposta. Não é sobre fingir que nas favelas não existe violência, mas sim sobre mostrar o que há de bom. Até porque, nos bairros ricos também existe violência, tráfico e roubos. Mas quantas vezes vocês viram o Mosquito Fofoqueiro sobrevoar a orla de Copacabana ou o Vivendas da Barra?

Esta coluna é de responsabilidade de seus atores e nenhuma opinião se refere à deste jornal.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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