“A agenda do clima, há muito tempo, não é mais uma agenda de ciência, de números e de estudos diplomáticos. É de ciência-números, mas também é uma agenda que interessa à população. A agenda de clima é uma fábrica de gerar desigualdade, problemas e pobreza para o povo”.
Esse foi um trecho do breve discurso de Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, durante o grande encontro da sociedade civil com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na última Conferência do Clima das Nações Unidas (COP27), no Egito .
Cada representante escolhido teve, em média, três minutos para erguer sua voz. A sala estava lotada de juventudes, lideranças indígenas e negras, mulheres, jornalistas, parlamentares, governadores e ambientalistas de diferentes gerações. Era uma fotografia clássica de parte de um Brasil revigorado, diante de um chefe de estado que estava lá para nos ouvir atentamente.
Enquanto o Brasil, o quinto maior país emissor de gases de efeito estufa , tem registrado registros de dados relacionados ao desmatamento e à queima excessiva de combustíveis fósseis, há uma política de reciclagem que nos fez muitas promessas em relação à priorização de estratégias para evitar a crise clima.
Embora não tenhamos mais tempo tolerado para ingenuidades que antecipem a celebração de promessas discursivas ainda no papel, podemos, ao menos, suspirar diante da possibilidade mais concreta de transformadores e socioambientais que estão por vir.
Foi em nome dessa expectativa que uma brasileira decepcionada de 574 representantes de todas as regiões do país se revezou entre a primeira e a segunda semana da COP27. realizado ali munidos de todas as ferramentas possíveis e, sobretudo, de nosso conhecimento para representar os desafios enfrentados do nosso país e, portanto, cobrar ações, além de reportar evidências científicas, políticas e narrativas de um cenário climático em colapso.
No período que estive no Egito, testemunhei, como jornalista, a representação de um país majoritariamente negro, com a maior população negra fora da África, na África. A acolhedora do movimento negro, composta pela Coalizão Negra por Direitos, Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), Confluência Yaleta, PerifaConnection, Institutos Marielle Franco, Perifa Sustentável, Mapinguari, Peregum e Ayíka, entre outros, chegou em peso na COP27 para ecoar agendas propositivas que visibilizam os enfrentamentos sofridos de 56% da população do Brasil.
Naquela mesma sala de reencontro da sociedade civil com um presidente eleito, Thuane Nascimento, conhecida como Thux, diretora do PerifaConnection no Rio de Janeiro, reforçou que “o nosso tempo, o tempo da juventude brasileira, da juventude periférica, não é o tempo do Norte global. O nosso tempo é o tempo da emergência climática e, como diz o Emicida, é tudo para ontem”. Isso é tão verdade que, ao ser dito em um espaço internacional das Nações Unidas, confronto as condições climáticas e a própria autoridade na participação dos países mais ricos que ditam a direção do financiamento climático no mundo.
Tive a felicidade de ouvir Adalberto Val, pesquisador e cientista, ao afirmar que “não há contraste entre o conhecimento tradicional e a ciência contemporânea. Existe uma soma desses conhecimentos, um apoia o outro. Muito do que a gente aprendeu na ciência só foi possível a a partir da interação com o conhecimento tradicional”. Historicamente, sabemos que houve um apagamento político, além da invisibilização e subestimação desses saberes, sobretudo nos espaços internacionais. Reconhecer, honrar e equiparar essa sabedoria ancestral é mais um passo rumo à descolonização da ciência.
O discurso de abertura, feito bravamente por Cíntia Feitosa, do Instituto Clima e Sociedade, que coordena o Brazil Climate Action Hub desde 2019, enalteceu a resistência da sociedade civil. Após o descredenciamento das ONGs pelo governo Bolsonaro, houve uma força-tarefa de luta por um espaço físico e oficial na COP25, em Madri.
“Foi a primeira vez que a sociedade de um país, e não o seu governo, se tornou a representação do país, uma referência do que é o Brasil. Um espaço que representou a resistência ao desmonte ambiental e climático do governo Bolsonaro, um sinal de que a sociedade não se sentia representada pelo governo e muito mais do que isso: de que com ou sem eles a gente ia continuar. E a gente contínua. E a gente resistiu, mas mantivemos nossa alegria e nossas propostas”.
Que novembro mais respiratório! Contudo, não podemos esquecer que, logo nos primeiros dias do mês do ano, enquanto comemoramos os pequenos e grandes avanços da COP27 e acompanhamos o desempenho do Brasil na Copa do Mundo, há seis estados brasileiros profundamente atingidos por enchentes, que morreram mortes, destruição, famílias desabrigadas e corpos desaparecidos.
O pesadelo dos desastres ambientais e incapacidade de o poder público agir com mais prontidão frente aos episódios sucessivos só provam que os discursos são insuficientes. É preciso criar e fortalecer planos de adaptação nas cidades e municípios –e reavaliá-los constantemente. É preciso de mais e melhores políticas públicas consistentes, centradas em justiça climática. Assim, conseguiremos desacelerar as violências sistêmicas e socioambientais com os recursos certos, investimentos de longo prazo, cobertura de danos e, sobretudo, respeito e solidariedade aos que experienciam na pele as catástrofes climáticas no Brasil.
Andréia Coutinho Louback
Jornalista pela PUC-Rio, mestre em relações étnico-raciais pelo Cefet/RJ e Fulbright Scholar na University of California, Davis. É especialista em justiça climática e uma das vozes no debate de raça, gênero e classe na agenda climática no Brasil
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo