Era um dia de sol de janeiro e a primeira vez que Mirella Francisconi, de 2 anos, iria à praia. O que era para ser um dia de boas lembranças, se tornou um pesadelo: Mirella foi baleada na cabeça enquanto retornava para casa na altura de Pilares. Pensar que uma criança que ainda está descobrindo a vida já foi atravessada pela violência armada no Rio de Janeiro é ter a certeza de que o sistema de segurança pública tem falhado com o presente e com o futuro.
O caso de Mirella não é um caso isolado. Em 2025, o Grande Rio atingiu a marca de 700 crianças e adolescentes baleados nos últimos oito anos, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado. Os números representam vidas perdidas e traumas estabelecidos por uma política de segurança que visa o confronto e não a proteção. Mirella sobreviveu e está se recuperando bem. No entanto, sua mãe Mayara Pinho, ainda sente o susto daquele 11 de fevereiro.
“Eu ainda estou um pouco abalada com isso tudo que ocorreu. É um sentimento de impunidade, quando olho pra minha filha e vejo ela tentando brincar com os irmãos e tendo dificuldade pra andar dói na minha alma, passa um filme na minha cabeça de como ela era antes disso tudo acontecer! Eu não posso escutar um barulho que já acho que é tiro! Fico me tremendo e meu coração fica disparado”, desabafa Mayara.
Dentro desses oito anos de monitoramento do Fogo Cruzado, estão casos tiveram uma grande repercussão na mídia como o menino João Pedro, de 14 anos, que foi morto pela polícia em São Gonçalo em pleno isolamento social por conta da Covid-19. Assim como Maria Eduarda, morta dentro da escola no Complexo da Maré em 2017. Um dos principais motivos dos tiroteios que atingem crianças são ações policiais.
Como forma de relacionar dados e memória, o Instituto Fogo Cruzado criou a plataforma Futuro Exterminado. O dispositivo traz informações sobre a idade de crianças e adolescentes baleados, território e quais circunstâncias as vítimas foram exterminadas. Iniciativas como essa devem ser valorizadas e disseminadas. No fim de 2024, o prefeito Eduardo Paes tomou a decisão de retirar as 49 placas com fotos de crianças vítimas de balas perdidas no estado do Rio, nos últimos dois anos, que haviam sido colocadas pelo Instituto Sou da Paz. Cultivar a memória se torna crucial para reforçar a dimensão da violência armada no Rio e o risco que adolescentes e crianças sofrem diariamente.
“O Fogo Cruzado constrói o Futuro Exterminado com intenção de produzir memória afetiva sobre essas crianças que infelizmente foram vítimas de uma politica de segurança falida. A falta vontade política de entender que as crianças e adolescentes sejam de fato prioridade quando se trata de preservação à vida e criar uma política que atenda essa demanda. O Rio de Janeiro depois de muita pressão do STF cria um plano de Segurança Pública que não tem uma linha sequer sobre a prevenção de homicídios a prevenção de vitimização de crianças e adolescente e isso deveria ser um escândalo para um Estado. Mas é algo normal porque não está dentro dos objetivos”, explica Carlos Nhanga, coordenador regional do Fogo Cruzado no Rio de Janeiro.
Mayara, mãe de Mirella, também concorda que as autoridades governamentais não prioriza a violência armada contra crianças e adolescentes. Por conta do tiro, a mobilidade da menina está um pouco afetada. Os membros do lado esquerdo estão com movimentos limitados e exigem fisioterapia. Apesar da evolução da filha, Mayara não deixa de se sentir triste diante de uma dinâmica de segurança tão violenta.
“É triste demais vê quantas crianças estão sendo vítimas dessa violência armada! Por pouco minha filha não perdeu a vida, mas quantas crianças estão morrendo por balas perdidas? Nós estamos perdendo o direito de ir e vir! A segurança pública está precária, e é triste vê que só quem sofre com isso tudo é a população que mora dentro das favelas! Não teve uma autoridade que veio procurar saber como minha filha está! Sabe por que? Porque eles não estão nem ai pra pessoas como nós! Minha filha tem apenas 2 anos e infelizmente já foi vítima dessa crueldade! É triste demais!”, conta Mayara.
A Delegacia do Méier segue investigando o caso de Mirella.