Dentro das comunidades do Rio de Janeiro, alguns verbos sempre estiveram presentes no cotidiano e no vocabulário dos moradores. Entre esses, o “reinventar”. Com a chegada da pandemia do coronavírus e suas consequências na saúde física, emocional e financeira, boa parte da população que reside nas favelas se viu na condição de recomeçar. Pois, os índices de desemprego, que nessas localidades já possuíam níveis consideráveis, aumentaram rapidamente.
Para alguns, a única saída possível envolveu outra expressão verbal: arriscar. Sem alternativas de trabalho formal, muitos optaram por ingressar no mundo do empreendedorismo nesse período. Segundo as informações do Mapa das Empresas de 2020, do Ministério da Economia, o Brasil registrou mais de 2,3 milhões de empresas abertas naquele ano. É nesta onda de abertura de empreendimentos que surgiu uma das tendências mais procuradas por quem frequenta as comunidades: as Ginkerias (empreendimentos que comercializam a bebida Gin).
Embalados pelo acelerado ritmo carioca, esses bares temáticos investem em padrão alto de qualidade de bebidas e estética a partir de referências de lugares famosos. Por exemplo, no Complexo do Alemão, mais precisamente na Rua Canitar, 687, o estabelecimento de Paulo Rodrigues e Fábio Souza, de 34 e 26 anos respectivamente, trouxe um pedaço da Itália para a favela.
Com o nome de Veneza, a Ginkeria dos dois sócios é uma das referências nesse ramo. Por lá, a estética do ambiente é toda direcionada aos detalhes da cidade que é considerada uma das mais bonitas no mundo. De acordo com Paulo, a ideia de abrir um espaço especializado em bebidas de alto padrão surgiu há um ano, quando perceberam a oportunidade de um local como este na comunidade.
“Nós dois somos amigos de longa data. Quando mais jovem, jogávamos futebol juntos. Então sempre tivemos essa parceria. Antes daqui, eu trabalhava com o aluguel de automóveis e o Fábio com uma loja de roupas. Aí, um certo dia, ele me ligou, de madrugada mesmo, falando que deveríamos abrir uma Ginkeria no Alemão. Na hora eu falei: vamos sim, mas me liga pela manhã, nesse horário não adianta nada (risos). No outro dia, fomos no espaço que estava com placa de “vende-se” e iniciamos nossa trajetória naquele instante”, detalha Paulo.
Nesse um ano de “caminhada”, os eventos da Veneza Ginkeria trouxeram uma geração de renda local, contratando moradores para trabalharem no recinto. Com expediente de quarta a domingo, das 19h às 03h da manhã, o bar já realizou evento com mais de 300 pessoas. Inclusive, por ser um ambiente inédito dentro da favela, recebeu a visita de celebridades e influencers digitais, como a atriz Mel Maia e Deise de Tombo.
Além delas, o lugar também é reconhecido por quem atua no cenário artístico do rap. Pelo estilo “diferenciado”, como fala Fábio, os artistas e cinegrafistas costumam visitar o estabelecimento. No último ano, a captação de imagens para o videoclipe da música “Eu fiz o jogo virar”, do MC Poze do Rodo, aconteceu na Ginkeria. Desde então, é natural a presença de artistas por lá e que geralmente realizam apresentações, como o rapper Salvador da Rima, o grupo Distrito 23 e outros.
“Com certeza, foi mais do que especial ceder o lugar para a gravação do clipe do Poze do Rodo. Somos amigos do produtor dele e, quando ele fez a proposta, aceitamos na hora. Até hoje, quando o Poze vem para o Alemão, ele pede uma bebida específica para gente, que é só a que ele toma. É muito importante essa relação de confiança que temos com ele”, destaca Fábio.
Um dos detalhes mais marcantes do ambiente passa pela idealização e visão de mundo que Paulo possui. Segundo ele, todos os acessórios que estão disponíveis na casa, como máscaras, mapas e copos são fabricados na própria cidade italiana. Para isso, o sócio realiza uma busca minuciosa nos sites e plataformas de vendas.
“Quando decidimos trazer a Itália para o Alemão, tomamos o cuidado da decoração realmente ser da cidade de Veneza. As máscaras tradicionais vieram de lá, os mapas, os copos e muito mais. Aí você me pergunta “por que tanto esforço?” É que por muito tempo fui um mochileiro (uma pessoa que vive de viagens e sem ter uma casa fixa) na Europa. Então, juntei com essa minha paixão de querer conhecer o mundo a vontade de trazer toda essa experiência para a comunidade”, destaca.
Atualmente, o bar Veneza Ginkeria conta com 4 funcionários fixos – além dos sócios. Entre eles, uma bartender, dois garçons e uma cozinheira. Aos finais de semana e de acordo com a lotação dos eventos, os proprietários contratam como “freelancer” (prestação de serviço para um dia específico) moradores da região.
“É meio loucura pensar que tudo isso vem dando certo aqui, né? Estamos felizes e com diversos planos para o futuro. Não esperávamos atrair um público tão grande. Compramos uma caixa de som e acessórios para os DJ ‘s que tocam durante os eventos também. Acaba sendo uma festa da comunidade para a comunidade”, revela Fábio.
Do outro lado do Rio de Janeiro, mais especificamente no Vidigal, na Zona Sul, a estética da Ginkeria também vem ganhando espaço. Por possuir amplas alternativas atrativas pelo território, como trilhas, espaços culturais e uma praia em frente à favela, o bairro se torna um dos pontos mais disputados quando o assunto é “comércio”. Compreendendo todas essas qualidades disponíveis na comunidade, os amigos João Vitor, Douglas Tavares, Luiz Paulo e o Seu José, mais conhecido comigo neguinho (apelido carinhoso), abriram o espaço gastronômico Gorila Ginkeria, que também segue o alto padrão de qualidade das bebidas.
Diferente da Ginkeria do Alemão, que já possui um ano de trajetória, as atividades no espaço são recentes, mais precisamente no dia 5 de novembro de 2021. Porém, antes de abrir o bar especializado em drinks de “gin”, os sócios possuíam um restaurante denominado Gorila Hamburgueria. O nome, segundo eles, é uma homenagem ao porte físico de um dos sócios. “Ele é muito forte e focado na academia, aí fizemos essa homenagem”, detalha Douglas.
Localizado na rua Dr. Olinto de Magalhães, número 74, na cobertura da Laje do Neguinho, o estabelecimento comercial funciona de segunda a segunda, a partir das 16h. Apesar do direcionamento do foco ser bebidas de alta qualidade, os preços são acessíveis para os moradores da região. Segundo Seu José, que é dono da área que funciona o empreendimento, a parceria com os outros sócios passa pelo compromisso de ser um lugar para quem é morador.
“O Vidigal tem muitos bares temáticos, né? Porém, boa parte deles não é direcionado para quem vive aqui. É para quem vem de fora, muitos turistas e outras pessoas com um alto poder aquisitivo. Obviamente, aqui eles também são bem-vindos, mas pensamos especialmente no morador”, expõe Seu José enquanto relembra a sua trajetória pela comunidade. De acordo com ele, que veio da Bahia para o Vidigal em 1993, a idealização de trazer a cultura comercial para a região começou na geração dele.
Por não ser natural do Rio de Janeiro e não possuir muitas indicações de trabalho na época, Neguinho trabalhou como ambulante na praia e, nessas experiências, conheceu muitas pessoas que atuavam na área de investimentos. Aos poucos, ele os convenceu de abrir uma loja ou empresa na favela. E, quando se deu conta, a comunidade já estava repleta de bares, lojas, mercados e tudo mais.
“É algo impressionante, sabe? Parece um filme! Por acaso, cheguei aqui em 1993 vendendo meus produtos na praia sozinho. Logo de cara, tive uma conexão muito forte com o Vidigal. Hoje, eu tenho alguns empreendimentos pela região e essa Laje do Neguinho é um dos mais queridos por mim, pois atende toda a comunidade e também quem frequenta a região”, comenta.
Para as amigas Renata, Camila e Jaqueline, a Gorilas Ginkeria é um espaço especial por respeitar e aceitar todo mundo. Para elas, o tratamento de qualidade acaba sendo um diferencial no momento de escolher para onde ir. Além disso, por ser próximo de onde moram, as três economizam os gastos gerados durante a saída de casa.
“Aqui é muito tranquilo para beber, comer e até curtir uma música. Hoje, por exemplo, a maioria do pessoal veio para assistir o jogo do Flamengo na Libertadores. Entretanto, mesmo assim, a noite tá tranquila para quem não gosta de futebol também. E isso é muito importante na hora de escolher para onde vamos”, define Jaqueline.
Além dos drinks e hambúrgueres, o bar também oferece petiscos de churrasco, batata frita e outros “tira gosto” para acompanhar durante o consumo de bebidas. Por funcionar de segunda a segunda, o empreendimento também proporciona festas temáticas na agenda local. Durante a semana, o espaço recebe bandas locais de pagode, funk, DJ’s e muito mais.
“A gente quer construir um espaço que todo mundo se sinta em casa. Por isso, por aqui, acontece de tudo. É muito legal ter essa diversificação no público. Por exemplo, não conseguimos definir a idade de quem frequenta aqui ou o gênero. Às vezes, o nosso público vai de 20 a 30 anos. Em outras oportunidades, de 30 a 50. E por aí vai. É uma iniciativa bacana que estamos introduzindo”, explica Luiz Paulo.
Por ser em um dos bairros mais badalados do Rio de Janeiro, a Ginkeria dos quatro sócios já contou com a presença de atores globais, como Lucas Vereia e Babu Santana. Além deles, o clima convidativo trouxe a presença de influenciadores digitais também. Entre eles, a Thaís Dutra, mais conhecida como Princesa da Favela.
“Quando olhamos para as pessoas que visitam o espaço, compreendemos que temos uma iniciativa bem bacana por aqui. Um clima bem tranquilo e convidativo para todos, entende? Claro, sem esquecer dessa vista linda do Vidigal que temos aqui da Laje. Muita gente adora e vem tirar várias fotos! De noite, fica fácil ver as luzes da favela”, exalta João Vitor.
Segundo os quatros sócios, o próximo plano é expandir o leque de eventos e oportunidades que a casa oferece para a comunidade. De acordo com eles, a ideia é incentivar a geração de renda local através do entretenimento, pois a favela também deveria ser um lugar tranquilo para viver e se divertir.
“Tem um evento aqui que acontece nas quartas-feiras que atrai muito morador: o pagode do trabalhador. Muitas vezes, a gente chega cansado em casa, de um dia difícil no serviço. Então, o que queremos é um bom lugar para beber e conversar. Ouvir uma música boa acalma sempre, né? Melhor ainda se for perto de casa”, destaca Douglas.