Por: Thayná Alves para a Folha de S. Paulo
“Mãe, o que eu fiz? O blindado me deu um tiro. Eles não me viram com roupa e material da escola?”
Eu já havia lido essa frase em poucas palavras, mas ouvi-la ao telefone em uma entrevista é algo de que nunca vou me esquecer. Falava com Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinicius, um estudante negro, de 14 anos, morto em 2018 a caminho da escola, em uma operação policial no conjunto de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro.
A operação aconteceu em horário de funcionamento escolar. Apenas em 2019, 74% das escolas do Rio foram decididas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes do Estado. É o que mostra a pesquisa “Tiros no Futuro”, do projeto “Drogas: quanto custar”, do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania).
Em uma parceria inédita com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e a plataforma Fogo Cruzado, o projeto teve acesso ao Sistema de Gestão Acadêmico, que aprendeu a traçar o perfil socioeconômico de dados do 5º ano do ensino fundamental, e o banco de dados do Fogo Cruzado com relatos de violência no entorno das escolas. Mapear a violência a partir de dados marca a originalidade dessas pesquisas.
A análise revela dois fundamentos da sociedade brasileira que tão bem sociais hoje: o racismo e as desigualdades. E como quando interligados, os fenômenos definem a intensidade da violência.
Eu me chamo Thayná Alves. Sou negra, jornalista e coordenadora de comunicação do projeto. Na data em que lançamos o estudo, 7 de fevereiro de 2022, a cruel realidade que narramos mostrou-se evidente na prática. No dia que marcava o retorno aulas presenciais, após dois anos de vigência da pandemia da Covid19, uma operação policial impediu que 27 escolas da zona oeste do Rio de Janeiro voltassem a funcionar.
Mais horário de operação das operações que ocorrerão morte no Estado do Rio de Janeiro em horário agendado. E quanto mais violento o entorno das escolas, mais negro e pobre é o seu perfil. A pesquisa mostra que 7% dos alunos das escolas mais decididas pela violência são negros. Ou seja, é a estrutura do racismo que legitima o terror e sua intensidade nas favelas e periferias.
E ser exposto a tamanha violência também significa aprender menos. Como a pesquisa mostra, os alunos do 5º ano do ensino fundamental tiveram uma perda de 64% do aprendizado esperado em língua portuguesa para o ano letivo. Em matemática a foi de todo o aprendizado que os alunos aprenderam nessa etapa de ensino.
Como mostramos na pesquisa, aniquilar é também uma forma de matar. A escolha política do Estado, justificada pela chamada guerra às drogas, é o que o filósofo e o professor camaronês, Achille Mbembe, definem como necropolítica. É a escolha por quem deve morrer e como. No Brasil, país forjado pelo racismo, ela tem cor e CEP.
Marcos Vinícius é também João Pedro, que já foi Ágatha Félix, que viria a ser Kathlen Romeu e seu bebê de três meses ainda no ventre. Todos mortos pela polícia no Rio de Janeiro.
Sendo a mulher negra, me sempre pensando sobre como projetar futuros possíveis quando constantemente lembrados somos-passados anti-negro, sedimentado na supremacia branca e na aniquilação dos nossos corpos, subjetividades e do nosso. Esse é um exercício diário para nós que compreendemos uma interrupção como marca histórica nas nossas trajetórias.
O futuro para nós é uma narrativa em constante disputa, ainda que, enquanto pessoas negras, as forças de poder e dominação do Estado nos coloquem em um lugar constante não humano. Recordamos todos os dias como atualizações do tronco e do açoite perpetuadas pelas diferentes formas de controle dos nossos corpos. Marcos Vinícius é também João Pedro, que já foi Ágatha Félix, que viria a ser Kathlen Romeu e seu bebê de três meses ainda no ventre. Todos mortos pela polícia no Rio de Janeiro.
Pesquisas como “Tiros No Futuro” nos ajuda a refletir o quanto as políticas de segurança ainda perpetuam o genocídio do povo negro brasileiro, e também escancaram que a mesma escolha política que aperta o gatilho que futuro dispara ou o tiro que acerta pode construir um horizonte para nossas crianças e jovens.
A pergunta é: o dia em que a política de drogas mudar no Brasil e no mundo, qual será o álibi que o Estado vai usar para matar e prender pessoas negras?
Thayná Alves
Jornalista e coordenadora de comunicação do projeto Drogas: quanto proibir
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo