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Favela também tem história

O resgate de espaços históricos por moradores e organizações das favelas é importante para que conheçam as suas origens
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Texto: Jacqueline Cardiano e Marco Kiko Venancio

“Na verdade, o nome não era pra ser Complexo do Alemão e sim, Complexo do Polonês. As pessoas quando moravam aqui, pra comprar alguma coisa, falavam que vinham no morro do alemão. E assim, surgiu o mito de origem do Morro do Alemão, a primeira favela de todo o Complexo”. 

“Foi uma experiência única, uma emoção inexplicável. Eu, Marcão e Moacir, que sempre fomos amigos e parceiros, fomos convidados pela Associação de Moradores para compor o samba para o Papa”

Vamos contar um pouco sobre a história do Complexo do Alemão e Vidigal mais a frente. Como eles surgiram e o que de importante temos a falar sobre esses famosos locais? Mas antes é preciso voltar no tempo e falar sobre a origem da favela. 

“A favela não é um problema, a favela tem problemas”. Essa fala é do sociólogo, doutorando em Planejamento Urbano e fundador do Instituto Raízes em Movimento, Alan Brum. 

No dia 4 de novembro, se comemora o dia da favela. E o que é para ser comemorado? Talvez as formas de conviver, os afetos. Mas, os moradores não podem se sentir esquecidos, assim como tentaram fazer com a favela. E para isso, a história deve ser conhecida, fora dos livros tradicionais. 

Atualmente, o Morro da Providência é considerado como a primeira favela, que antes era Morro da Favela, o que Alan Brum chama de “mito de origem”. Mito, porque já haviam casas em outros morros, no Centro e mais locais da cidade. O local foi ocupado por soldados vindos da Guerra de Canudos. Com o fim do conflito em 1887, eles não receberam os soldos do governo e ficaram perto do Ministério do Exército. Uma teoria da origem do nome favela é que o local parecia com um monte na Bahia, coberto com uma planta chamada favela. No Rio, deram o mesmo nome para onde estavam. Além disso, o morro da Favela também foi ocupada por pessoas expulsas dos seus cortiços. A partir daí, locais com barracos nos lugares altos da cidade foram denominados ‘favela’ pelos jornais e livros da época.   

Voltando ao Alemão e Vidigal…

Alemão era Polonês

Por aqui sofremos para escolher um local importante do CPX. Poderíamos falar sobre o grafite da já falecida Dona Jandira, na Avenida Central, feito por Wallace Pato, vinda de uma foto do Hector Santos.Também foi difícil deixar de fora a história do Casarão das Casinhas ou dos campeonatos de futebol do Campo da Mina, que aconteciam anos atrás. Mas vamos falar do que não dá para fugir: o alemão era polonês.

“No início do século 19, já existiam os bairros de Olaria, Ramos, Bonsucesso e Penha,” diz Alan, apontando na vista panorâmica para cada um dos bairros no alto do morro do Alemão. Alan explicava um pouco da história do Brasil, do mundo e do CPX, durante um “passeio” com os seus alunos de medicina. Estávamos, então, no lugar onde o “polonês-alemão” vivia. 

“Na verdade, o nome não era pra ser Complexo do Alemão e sim, Complexo do Polonês. O alemão não era alemão, mas tinha características de alemão”, diz. O polonês era Leonard Kaczmarkiewicz, que fugiu do seu país, depois da primeira guerra Mundial, porque na região ainda existiam muitos conflitos. 

“Ele veio pra cá em 1928, era tudo mato”, afirma Alan. O que parece um bordão, é verdade. E ainda completa dizendo que os donos das terras eram as famílias Motta e Gouveia, que não utilizavam as terras. “A família Motta vai arrendar e depois vender um pedaço dessa terra, dessa rua pra lá”, diz mais uma vez apontando a localidade.

O polonês Leonard veio para o Brasil após a 1ª Guerra Mundial
Foto: Reprodução

E a partir daí, o polonês criou uma chácara, onde criava cabrito, galinhas e hortaliças. “As pessoas quando moravam aqui, pra comprar alguma coisa, falavam que vinham no morro do alemão. E assim, surgiu o mito de origem do Morro do Alemão, a primeira favela de todo o Complexo”, diz.

Alan também explica que o polonês loteou as terras e tinha um aluguel de chão, onde as pessoas moravam por alguns meses. “E, a partir daí, o processo perdeu todo o controle. Não só no Morro do Alemão, mas em outras partes do Complexo”. E com o processo de industrialização, em momentos diferentes da história, a partir da década de 40, houve um “boom” de pessoas vindas de outras partes do Brasil para trabalhar principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo. Subiram os morros ou locais insalubres em partes baixas da cidade, com nenhuma atenção dada pelo poder público. 

Somente na década de 80 que os governos assumiram que a favela não era um local provisório. Até então achavam que a favela seria destruída, segundo as explicações de Alan. E é claro que o CPX não iria ficar de fora. 

Vidiga também tem história 

O Vidigal ganhou esse nome em homenagem ao dono das terras onde a comunidade se encontra hoje: o Major de Milícias e Intendente da Polícia Miguel Nunes Vidigal. Ele era de grande influência no Primeiro Império. O major Vidigal recebeu essas terras, que iam das encostas do Morro Dois Irmãos até o mar, onde construiu a Chácara do Vidigal. 

Os primeiros barracos da comunidade surgiram na década de 1940 e até 1962 a favela cresceu pouco. O crescimento acelerou na década seguinte e, com isso, surgiu o risco de remoção da comunidade. Devido a isso, no final da década de 1970, o Vidigal se tornou um marco na resistência no que diz respeito à remoção de favelas. Em plena ditadura militar, a associação de moradores, juntamente com os advogados da Pastoral de Favelas, entre eles os juristas Sobral Pinto e Bento Rubião, conseguiu evitar que os barracos da parte baixa da favela fossem removidos para dar lugar à construção de um empreendimento de luxo. 

Os moradores que resistiram fizeram melhorias na favela e, após grande luta, conseguiram apoio político e popular que culminou, em 1978, na desapropriação, para fins sociais, de toda área. Um decreto foi assinado pelo então Governador Chagas Freitas e isso afastou de vez o perigo da remoção. 

Não tem como falar da história do Vidigal sem citar a visita do Papa João Paulo II que, em 1980, visitou e abençoou a comunidade. Antes disso, não existia uma capela. O que havia era um campo de futebol. Contudo, moradores cientes da visita do Pontífice decidiram fazer uma para recebê-lo. Além disso, um grupo de moradores, em agradecimento pelo papel importante que a igreja católica teve na permanência da comunidade, prestou uma homenagem através de um samba.

Um dos compositores desse samba é o aposentado Marco Antonio Teixeira da Luz, de 71 anos, conhecido como Marquinho do 14. Ele, junto com seus amigos Moacir e Marcão, compôs o samba que ficaria eternizado como “Saudação ao Papa”.

“Foi uma experiência única, uma emoção inexplicável. Eu, Marcão e Moacir, que sempre fomos amigos e parceiros, fomos convidados pela Associação de Moradores para compor o samba para o Papa. Nós já havíamos feito algumas músicas e participado de alguns festivais. Aí, quando o pessoal da associação teve certeza de que ele viria mesmo no Vidigal, fizeram esse convite”, contou Marquinho.

O sambista também falou sobre o que mudou depois da visita de João Paulo II.

“O que mudou em mim foi que eu me senti mais forte e solidário. Percebi que a partir dali as coisas dariam certo para a comunidade. O Vidigal passou a ser visto de outra maneira e a imprensa falava de nós com muito respeito. Daí vieram as transformações e melhorias de uma forma avassaladora. Foi realmente uma benção”, completou.

A Capela de São Francisco de Assis permanece no mesmo lugar. Ainda é muito parecida com a construção original da década de 1980 e se tornou um dos grandes símbolos da resistência dos moradores que culminou com a permanência da comunidade. Nessa capela se encontra uma réplica do anel episcopal, doado para a comunidade durante a visita e que simboliza o apoio de João Paulo II à sua causa (o anel original fica guardado no Museu de Arte Sacra).

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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