Saúde mental de mulheres negras: o trabalho da Casa de Marias no limite entre íntimo e político

Para promover saúde mental, é preciso garantir políticas que resguardem a dignidade das pessoas
Mulheres que participam da Casa de Marias - Divulgação
Mulheres que participam da Casa de Marias - Divulgação

Por: Dra. Ana Carolina Barros Silva para a Folha de S.Paulo

A bala perdida da polícia nas favelas sempre nos encontra –imagine agora, que ameaçam retirar as câmeras das fardas. O alvo do genocídio em curso da população negra não mira só os corpos pretos. O projeto de extermínio também acerta sonhos pretos. Nossas almas, nossos horizontes, nossas potências negras: todas sob ameaça. É possível “morrer em vida” e isso também é parte da necropolítica.

Quando adoecemos, nos estilhaçamos, nos despedaçamos subjetivamente. Por vezes, morremos um pouco. O crescente adoecimento psíquico da população negra, dos pobres, do povo periférico, indígena, LGBTQIAP+ e quilombola é um sintoma muito contundente que nos ajuda a analisar nossa conjuntura atual e extrairmos, pelo menos, duas conclusões: o modelo econômico capitalista fracassou e, como cruel consequência de seu estado de crise, precarizou a vida e a saúde das pessoas mais vulneráveis; e em uma sociedade onde a desigualdade socioeconômica e o racismo estrutural são fatos, não conseguimos cuidar da saúde mental da população enquanto não aliarmos, em definitivo, a atuação clínica e a luta política (sempre de classes) antirracista em direção a um modelo de sociedade mais igual e justa para todas as pessoas.

É muito improvável (para não ser muito fatalista) que ações de promoção de saúde mental, quaisquer que sejam, produzam resultados expressivos e mais concretos a longo prazo, sob a égide de um funcionamento social no qual, ao final do dia, o lucro importa mais que a vida ou no qual saúde é mercadoria.

Não existe possibilidade de cuidado real com a saúde mental em uma lógica onde saúde é gasto e não investimento, e onde existe um projeto em curso de privatização, terceirização, precarização e desinvestimentos nesse setor tão vital.

Mulheres em evento na Casa de Marias
Mulheres que participam da Casa de Marias – Divulgação

A pandemia agravou crises profundas que já existiam em nosso país e nos deixou legados cruéis. Um deles, sem dúvida, é o aumento desenfreado dos diagnósticos psiquiátricos que vão desde depressão até transtorno de ansiedade, passando pela normalização das insônias, ideações suicidas, transtornos alimentares, auto-mutilações, pânico, apenas para citar alguns exemplos do que virou corriqueiro em nossos consultórios.

Atuo há quase dez anos no âmbito clínico, atendendo especialmente mulheres negras. E fica muito nítida, no sofrimento desse segmento da população, a linha tênue entre o íntimo e o político. Ventos de esperança parecem ter começado a soprar no último domingo e, com isso, nós que trabalhamos com saúde mental da população negra, pobre, periférica e indígena, queremos crer que poderemos finalmente passar a discutir saúde mental de forma séria e com o devido rigor no Brasil, dentro da concepção de que ela passa por questões estruturais de garantia de direitos básicos e da ética do bem-viver.

Para promover saúde mental de forma responsável, precisamos, necessariamente, garantir políticas que possam resguardar a dignidade das pessoas: moradia, renda mínima, trabalho, cultura, educação. Pressupondo que esses direitos básicos estejam assegurados, pensar política pública de saúde mental não passa por promover campanhas de “meses coloridos” (apenas), mas passa sim, fundamentalmente, por garantir mais investimentos que possibilitem uma efetiva ampliação da rede pública de saúde e aplicação real do que está previsto no texto da lei que cria o Sistema Único de Saúde no Brasil.

Elaine Soares, coordenadora de Políticas Públicas em Saúde de Porto Alegre
Elaine Soares, coordenadora de Políticas Públicas em Saúde de Porto Alegre

Nós, da Casa de Marias – espaço de escuta e acolhimento, que atende mulheres cis e trans, negras, periféricas, indígenas, LGBTs, quilombolas, imigrantes ou refugiadas em situação de vulnerabilidade -temos trabalhado cotidianamente para pautar a discussão de saúde mental em nosso país nesses termos e para seguir cuidando das pessoas nesses tempos tão difíceis que vivemos.

Sabemos que iniciativas como essa são apenas grãos de areia em um cenário de desmonte sistêmico e de fissuras graves em nossas instituições. Porém, acreditamos que seja possível, mesmo diante da tempestade, que experiências como essa sejam apontamentos concretos de um caminho mais próximo e coerente com aquilo que concebemos como saúde pública. O nosso horizonte ideal ainda está distante, porém, temos consciência de que os sonhos se constroem hoje e é por esse motivo que seguimos na luta constante por justiça social.

Dra. Ana Carolina Barros Silva
Psicanalista, com doutorado pela USP e pela Université Paris VIII, coordenadora-geral da Casa de Marias

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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