OPINIÃO | O novo governador do Rio de Janeiro quer drones e snipers para atirar “na cabeça” — nas favelas

Por Bruno Bimbi #ColunistaConvidado

“A Polícia vai apontar para a cabecinha e… fogo!”, disse o governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, para explicar como vai ser a sua política de segurança. A declaração foi durante uma entrevista ao jornal O Globo.

— Se não tiver agressão, é legítima defesa sem dúvidas? — perguntou o jornalista.

— Também tem que morrer — disse Witzel — Você está com um fuzil? Tem que ser morto. O Estado tem que entender que tipo de segurança quer.

— Essa política não vai aumentar as taxas de letalidade?

— Vai reduzir as taxas de bandido com fuzil em circulação.

“Abate”, a palavra para que utiliza muitas vezes o futuro governador, não é usada no Brasil para se referir a pessoas, mas a animais.

Rodrigo Alexandre da Silva Serrano tinha 26 anos, trabalhava como garçom e morava na favela chapéu Mangueira, perto das praias de Leme. Em 17 de setembro, quando Witzel ainda não passava de 4% nas pesquisas, Rodrigo desceu a ladeira do morro para esperar sua esposa e seus filhos, um deles de dez meses. Levava um celular, uma mochila “canguru” para bebê, as chaves de casa e um guarda-chuva. Os agentes da UPP (ironicamente, Unidade de Polícia Pacificadora) acharam que o canguru fosse um colete e o guarda-chuva, um fuzil. Atiraram. No dia seguinte, a versão oficial foi que Rodrigo foi baleado em “uma troca de tiros entre policiais e traficantes”.

A frase “Polícia confunde X com Y” é um lugar-comum nas manchetes dos jornais brasileiros, usada em notícias sempre localizadas no mesmo território: a favela. Porque essas coisas não acontecem no asfalto. Onde vivem os mais pobres, um guarda-chuva pode ser confundido com um fuzil, uma furadeira ou um macaco hidráulico com um revólver, um saco de pipoca com drogas; todos os exemplos reais dos últimos anos. E as balas se gastam facilmente.

Essa experiência de vida — siempre à beira da morte mais absurda — não é a mesma que nós temos, nos bairros de classe média em que guarda-chuva sempre é guarda-chuva e a polícia nos trata com respeito na rua e não atira sem motivo; mas a vida não vale nada lá, onde os “cabecinhas pretas” são sempre suspeitos.

“É um Estado doente, que mata uma criança com uniforme escolar”, disse meses atrás a mãe de Marcos Vinicius, um adolescente de 14 anos que recebeu um tiro durante uma operação policial no complexo favelas da Maré. “Mãe, eu sei quem atirou em mim. Foi o blindado, mãe. Ele não viu que eu estava com a roupa da escola?”, disse o menino à sua mãe, todo encharcado de sangue, antes de morrer.

Eu poderia citar inúmeros casos semelhantes, muito mais frequentes do que qualquer um que não more no Rio de Janeiro poderia imaginar, sempre tratados como “excessos” da PM, a Polícia Militar — mais militar no morro, mais polícia no asfalto.

Mas mesmo sob esse eufemismo, os homicídios policiais são denunciados e investigados, mesmo que os resultados dos processos judiciais raramente se pareçam  com qualquer noção de justiça. Agora, com a nova doutrina da Witzel e Bolsonaro, não serão mais “excessos”, mas um explícita política de Estado. Como disse o presidente eleito durante sua visita ao Bope, o temível batalhão de operações especiais, onde ele fez um acto ilegal campanha, “quem vai mandar neste país são os capitães”.

De acordo com o Mapa de Violência, em 2014 (os dados mais recentes disponíveis), houve 42.291 homicídios com arma de fogo no Brasil, um número que cresce há décadas. No entanto, ao observar a curva desde 1980 (considerando a taxa para cada 100 mil), vemos que passou de crescer uma média de 6,2% por ano até 2003, a 0,3% a partir desse ano. Não é por acaso: em 2003 foi aprovado o estatuto de desarmamento, sancionado pelo ex-presidente Lula, que restringiu a venda de armas e tem promovido políticas para tirá-las de circulação. Em 2005, apoiado por parte da oposição, Lula enfrentou o poderoso lobby da indústria das armas em um referendo que teria permitido endurecer ainda mais o estatuto, proibindo completamente as vendas para qualquer um que não faça parte de forças militares ou de segurança, mas a proposta foi derrotada nas urnas.

Agora, Bolsonaro quer acabar com todas as restrições e liberar completamente as armas, como ansiam seus amigos fabricantes, que estão eufóricos com sua vitória. A percentagem de homicídios realizados com armas de fogo (sobre o total de homicídios) também aumenta ano após ano, desaconselhando, como todos os outros dados estatísticos, o que propõe o novo presidente.

De acordo com os números de 2014, as vítimas são preferencialmente homens (94,4%) e jovens (59,7%), e a segmentação por idade traz dados alarmantes: aos 20 anos, a taxa de homicídio com arma de fogo é 67,4 por cada 100 mil (como referência, na Argentina, a taxa total de homicídios de 2016 foi de 6 por cada 100 mil, de acordo com o Ministério de Segurança). Mas os dados mais brutais referem-se à cor da pele, que no Brasil tem íntima conexão com a classe social: do total de vítimas de 2014, 23,1% eram brancos e 70,5% pretos e pardos. Como canta Caetano Veloso, “quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”.

Conjunto de favelas do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro

O discurso populista sobre segurança foi um dos eixos de campanha de Bolsonaro e Witzel, uma das surpresas do primeiro turno. O novo governador é um ex-juiz federal com um histórico medíocre e manchado por escândalos, que passou ao segundo turno sem que boa parte da população soubesse mesmo falar seu nome, graças a uma forte campanha no último dia em grupos de WhatsApp bolsonaristas. Antes da eleição, disse ironicamente que não lhe preocupava que não houvesse espaço nas prisões para mais detentos. “Podemos cavar covas”, respondeu quando lhe mostraram dados da superpopulação carcerária, que provam o fracasso das propostas cujo eixo é prender cada vez mais pessoas e por mais tempo, como tem sido feito nas últimas décadas.

O modelo de segurança proposto pelo novo presidente e o novo governador é baseado em três pilares. Em primeiro lugar, endurecimento de penas e restrição dos benefícios processuais que permitem sair antes da prisão, como parte de uma concepção que vê a prisão não como uma exceção que visa ressocializar, mas como prevenção pelo exemplo negativo e punição — quanto mais cruel, melhor. Em segundo lugar, como já dissemos, a liberação das armas, através da reforma radical do estatuto de desarmamento (que, de acordo com as estatísticas acima citadas, salvou mais de 160 mil vidas desde 2003), e um discurso público que incentiva que todo mundo tenha armas em casa para “se proteger dos bandidos”, privatizando assim a função das forças de segurança. Em terceiro lugar, a autorização para matar que Bolsonaro quer dar às forças de segurança. “Um policial que não mata não é um policial,” diz o presidente eleito, que também apoia o lema: “bandido bom e bandido morto”.

Para que a polícia mate mais, ele quer que se altere a legislação, para expandir a chamada “exclusão de ilicitude”, que vai deixar os crimes cometidos por policiais fora de qualquer possibilidade de investigação e punição. “Alguns me dizem: mas você quer dar à polícia autorização para matar? Sim, eu quero”, explicou Bolsonaro em uma palestra, no final do ano passado.

Na verdade, a Polícia Militar já mata, e muito. No Rio de Janeiro, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), nos sete primeiros meses de 2018, a PM fluminense matou 895 pessoas “em confronto” sob a figura de “auto resistência”, que agora Bolsonaro quer ampliar. Foi a maior quantidade de mortes desde 1988, quando começou a série estatística. Em comparação com 2017, o aumento foi de 39,2%. É a polícia que mais mata, e também a que mais morre, sem reduzir a insegurança, como reza o credo demagógico bolsonarista.

Witzel, fiel a essa doutrina, também anunciou que treinará snipers, atiradores de elite, para disparar contra “bandidos” das favelas desde helicópteros, e que seu governo vai comprar drones armados para ajudar a PM.

No Brasil não há pena de morte, pelo menos oficialmente, mas o que o governador propõe é legalizá-la na prática, com apoio total do Estado para matar sem julgamento e nem advogado de defesa: execução sumária para quem tiver um fuzil.

Ou um guarda-chuva, desde que seja na favela.

 

Bruno Bimbi é correspondente do canal de notícias argentino TN, do Grupo Clarín. O artigo foi publicado originalmente no site da emissora.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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