Jovens de favela lidam com excesso de tela, o que acende um alerta para o impacto na saúde mental  

Pesquisa aponta que 45% dos casos de ansiedade em jovens estão relacionados ao uso excessivo de celular
Arte: Tamires Aragão

“Eu passava o dia todo no celular e em rede social. Não fazia mais nada. Me afastei dos meus amigos, não comia direito. Eu só queria saber de ficar na internet. Estava com vício em dopamina rápida”. Atualmente, essa fala é tão comum que poderia ter saído da boca de qualquer adolescente. Mas foi Jaqueline Nunes da Silva, de 19 anos e moradora do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, que disse. Quando tinha 14 anos, no auge da Pandemia de Covid-19, a jovem desenvolveu uma espécie de vício em redes sociais devido ao tempo de tela.  

Depressão, ansiedade, estresse, descaso, falta de atenção, frustração são alguns dos efeitos que o uso excessivo de internet pode vir a causar. Jaqueline contou que chegou um momento da vida que não comia direito e que tinha muita dificuldade de interagir com outras pessoas da idade dela, além das brigas dentro de casa. “A minha mãe, na época, trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Mas durante a pandemia, ela foi demitida. Então o cenário era a minha mãe sem trabalho e eu acessando a internet por cerca de 12 horas só pedindo a ela para comprar coisas. Começamos a brigar muito. E somos só eu e ela. E eu não entendia por que eu não poderia ter tal peça de roupa que o famoso da rede social tinha.” 

Jaqueline ficava cerca de 12 horas no celular acessando redes sociais e lojas online. Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades 

Jaqueline relembra que na época isso a deixava muito chateada e que chegou a parar de falar com a mãe por não conseguir o que queria. “Eu não conseguia entender, sabe? Eu não saía de casa, eu ficava 12 horas no telefone. Eu ficava muito tempo em lojas online e ficava vendo o dia inteiro stories de famosos no Instagram”. Esse grande contato com as telas foi extremamente prejudicial para Jaqueline que conta que em determinado momento foi necessário pedir ajuda médica. “Eu fiquei muito prejudicada. Na escola, eu sempre fui uma pessoa muito extrovertida. Mas o uso contínuo de celular fez eu ficar introvertida. Eu não conseguia mais conversar com as pessoas. Fiquei muito tempo sozinha. Isso foi piorando minha saúde mental e minha mãe começou a ficar preocupada e achar estranho. Ela procurou o UPA do Alemão e eles me encaminharam para fazer um acompanhamento psicológico e comecei a fazer terapia”. A mãe de Jaqueline, Lurdiane Nunes, contou que chegou um ponto que ela não reconhecia mais a sua filha. “Eu não a reconhecia e nem ela se reconhecia. Ela passou a ter uma imagem muito distorcida dela mesma. Só usando filtros em fotos, não se aceitando, querendo comprar caras. Foi aí que procurei ajuda médica.” 

O jovem atualmente está mergulhado no mundo das redes Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades 

Para a psicóloga Herika Cristina da Silva, sócia-fundadora do Instituto de Psicologia Cognitiva do Rio de Janeiro (IPC-RJ) e mestre em saúde mental pela UFRJ, a internet e as redes sociais são hiperestimulantes. Ela conta que são muitos estímulos ao mesmo tempo e com oferta de respostas e recompensas muito rápidas. “Com isso, o nosso cérebro está sempre em alerta, gerando muita ansiedade e estresse. Não há mais tempo e espaço para ócio, que é importante para o nosso cérebro se recuperar, se reorganizar, fazer o processamento de informações e emoções. Portanto, o uso excessivo, por si só, independente dos conteúdos consumidos, já passam a interferir na forma de se comportar, sentir e pensar de todos os usuários.”  

Para a Psicóloga Herika Cristina da Silva diminuir o tempo de telas é essencial para criar conexões reais. Foto: Arquivo Pessoal 

Ela explica que, com o uso excessivo de telas, perde-se a capacidade de tolerância ao tédio, as frustrações e ao desconforto. “O usuário fica cada vez mais imediatista, dependentes de recompensas cada vez mais instantâneas e de curto efeito, com cada vez mais dificuldade de atenção e concentração em uma única atividade por um tempo maior de tempo, e nada disso gera mais felicidade e bem-estar.”  

De acordo com a pesquisa Panorama da Saúde Mental 2024, realizada pelo Instituto Cactus, em parceria com a AtlasIntel, 45% dos casos de ansiedade em jovens de 15 a 29 anos estão relacionados ao uso intensivo dessas plataformas. A pesquisa também divulgou que jovens que passam mais de três horas por dia em plataformas digitais têm um risco 30% maior de apresentar quadros de depressão em comparação com aqueles que fazem um uso mais moderado. Outro aspecto significativo é a influência do feedback digital na autoestima. Cerca de 40% dos entrevistados relataram que sua autoestima é profundamente afetada pelo número de curtidas e comentários que recebem em rede social. 

A psicóloga explica esses dados. Ela conta que adolescentes e jovens são indivíduos em formação, que ainda estão desenvolvendo sua identidade, seus valores, tem uma grande necessidade de pertencimento, e estão num período em que seus mundos estão se ampliando para além de seu contexto familiar. Inclusive, estão no momento de diferenciação da família. “As redes sociais passam a ser muitas vezes a maior referência na vida dos jovens e então a moldar os comportamentos, valores e opiniões desses. O tal do algoritmo influência nos tipos de conteúdo e informações que serão entregues a cada um e sem que se tenha controle disso. E as informações que se consome, influenciam o tipo de pensamento, valores e convicções que se pode ter, principalmente, falando de jovens ainda em formação. E as redes sociais fazem com que as comparações não sejam mais entre pequenos grupos, mas com uma infinidade de pessoas de todo o mundo. E pessoas que nem se conhecem e com contextos de vida extremamente diferentes ao seu, passam a virar grandes referências de comportamento e estilo de vida. E isso culmina em expectativas, demandas e desejos que são irrealistas e impossíveis de serem alcançados para a maioria das pessoas, especialmente pessoas em desvantagens socioeconômicas. Com isso, aumenta-se a insatisfação com a vida, as frustrações, a ansiedade, as frustrações e a infelicidade”.  

Mas como resolver tudo isso? Jaqueline, com a terapia, começou a diminuir o tempo de tela e procurar um hobby foi essencial na busca por uma saúde mental equilibrada. “Voltei a ter o hábito da leitura. E me inscrevo em tudo que é curso para me ocupar. Me inscrevi no pré-vestibular gratuito +Nós Alemão aqui no CPX e ali foi onde passei a me comunicar melhor. Voltei a ter amizades”. Para a psicóloga, é importante que se viva mais fora do mundo digital e que se crie conexões reais e presenciais com seus semelhantes, mas ela conta que é responsabilidade de todos. “Isso é uma responsabilidade social também. É importante que se crie condições dignas e que esses jovens tenham alternativas a recorrer além do mundo digital. Não adianta apenas deixarmos essa responsabilidade na ordem do individual. Esse jovem precisa de alternativas no mundo real que o possibilitem ter acesso a oportunidades e atividades relevantes fora das telas, como lazer, cultura, esporte e eventos de integração”, explica a psicóloga.    

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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