Filha de Exu, mãe de muitas: A jornada da ativista social Miriam Generoso e seu trabalho com mulheres no Morro da Providência  

Abrindo um novo espaço de acolhimento para mulheres do Morro da Providência, Miriam falou sobre aspirações, trajetória e liderança de transformação no território
Foto: Natália de Deus / Voz das Comunidades

Muita gente já sabe, mas aqui no Voz das Comunidades, fazemos questão de revalidar a informação: O Morro da Providência é a primeira favela do Brasil. E esse título precisa ser lembrado, pois é a partir dessa validação que atualmente, depois de muitas lutas políticas, desafios ao sistema e gritos de movimentos sociais que podemos contar histórias de grandes personalidades do passado do Brasil que passaram por esse território. Entre 2021, após anos de embranquecimento, o escritor Machado de Assis voltou a ser negro. E partir dessa redescoberta, muitos aprenderam o escritor morou um tempo no Morro da Providência, também conhecido como Pequena África. Esse “apelido” também renovou a importância do Morro da Providência no carnaval de 2025, quando a Estação Primeira de Mangueira retratou em seu desfile o que o povo Bantu, vindo de África e que muito viveu no Morro da Providência, trouxe para o Brasil. E celebrando essas histórias que são contadas e redescobertas, é possível ver o quanto que o Morro da Providência foi morada para muitos ícones que moldaram a realidade cultural no Brasil. 

E não só o Morro da Providência, mas todo o território de periferia precisa moldar, revalidar e se fortalecer. Na primeira favela do Brasil, as ferramentas para ‘moldar a realidade social’ são poucas, mas que proporcionam grandes transformações para quem mora e vive na realidade da periferia. E para que esse desejo de transformação tenha impacto, é necessário que uma primeira engrenagem gire para que tudo ao seu redor possa funcionar e todo um ecossistema possa ascender. 

Neste episódio de entrevista de perfil, depois de todo esse início sobre o Morro da Providência, que vamos falar da nossa engrenagem principal. Miriam Generoso. Mulher preta, advogada, 39 anos (sendo 24 de moradora da Providência) e que é possível dizer, que surfa um grande momento na sua trajetória enquanto articuladora e transformadora social. Miriam nos encontra no Bar da Jura, quase no topo do morro. Ela cumprimenta a mim e a Natália de Deus, quem além integrar a equipe de redes do Voz das Comunidades e da Casa Amarela, é produtora e fotógrafa dessa reportagem, além de conhecer Miriam há mais tempo. O abraço das amigas é longo, e é notável que a amizade é reflexo da fé que as acompanha. Um assunto rápido sobre trabalho e  Miriam nos guia para o seu novo espaço, local da entrevista.

A casa é quase em frente à entrada do teleférico. O portão é estreito é cinza e se mescla com o muro de pedra, alto o suficiente para impossibilitar olhar por cima. Para olhar para casa, apenas para cima. Miriam abre caminho e nos lidera pelo lance de escadas, dentro do imóvel. O tintilar do chaveiro acompanha a conversa dela com a Natália quando vai nos liderando. Após um lance de escadas, Miriam empurra uma porta, nos apresentando uma sala com paredes brancas. “Com licença”, anuncio respeitosamente a minha entrada. Natália me segue. Miriam nos guia pela sala, onde passamos por um corredor curto, finalizando no seu escritório. Mesa, computador, sofá, poltrona, estante e uma janela com vista para a Central do Brasil. Próximo à janela, um altar para Exu, o regente da comunicação. 

Miriam nos oferece um café e Natália me apresenta mais formalmente e conta rapidamente sobre a produção da pauta. “Eu tinha falado pro Guri que o evento era hoje, mas me perdi nas datas. Mas só notei isso quando estávamos no carro vindo pra cá!” Nós três rimos. Mas a nossa senhora da boa pauta é benevolente conosco e aqui estamos nós para falar sobre Miriam Generoso, sua trajetória e um novo espaço para que as mulheres do Morro da Providência possam ser as outras engrenagens que em volta de Miriam.

Foto: Natália de Deus / Voz das Comunidades

“Eu vim adolescente para Zona Portuária. Morei a vida inteira ali na Zona Norte. Morro do Encontro, Morro do Andaraí, Vila Isabel e Morro do Cruz. Minha primeira infância toda nesses territórios. Só vim para a Zona Portuária com 15 anos. Quando cheguei aqui, isso não era nem a metade do que é hoje”, conta ela. Morou primeiro no bairro da Saúde e depois sua avó comprou um apartamento no Morro da Providência.  “A gente ficou instaladas aqui no território. Mas logo em seguida, saí de casa. Saí aos 17 anos para poder trabalhar, estudar. Além disso, casei muito cedo”, relata. O primeiro casamento de Miriam durou 10 anos e mesmo casada, sempre morou próximo à Providência. “Eu tenho uma questão com casa, acho que eu cresci muito independente. Então não consigo ficar muito tempo em um lugar só. Chega uma hora que me dá uma agonia e eu preciso me mudar”. Na época com 20 anos, fazia faculdade de direito. Não subia muito o Morro tanto pelo relacionamento, como também pela rotina que era casa, trabalho e faculdade. “Quase não subia aqui porque não tinha amigos que moravam aqui em cima. Então ficava pensando ‘vou fazer o quê andando pelo Morro?’ Não tinha sentido pra mim. Até porque na época, a questão violência era muito mais latente aqui na Providência”.

Depois que terminou a faculdade, a vida lhe concedeu mais um capítulo de experiência. Com um relacionamento novo e uma mudança para São Paulo, os olhos de Miriam se abriram para a liderança. “Depois de formar, eu tive esse companheiro, que foi muito bom, porque até então eu nunca tive uma presença preta como referência, nem na minha família, nem pessoas próximas. Ele era do movimento negro, mestre em comunicação, entrou pelas cotas, enfim, já tinha todo um discurso racializado, sabe? E a minha posição de identidade começa a partir deste ponto”, conta relatando que, na época, por mais que não se visse como mulher branca, não sabia exatamente o que era ser uma mulher preta. Após 2 anos em São Paulo, Miriam retornou ao Morro da Providência, em 2018. E é neste momento que ela encontra o grande caminho na sua vida: “É quando faço minha iniciação de Exu”.

Na volta para o Rio de Janeiro, Miriam começou a cultivar amizades com mulheres pretas ao mesmo tempo que enfrentava um período de retomada. “E foi nesse período também que veio o Afrocine, que é um projeto nosso de CineClub das Mulheres que eu fui começando a construir e fortalecer assim a identidade de mulher preta, de mulher negra. Era uma era um CineClub voltando só para a gente conversar sobre negritudes. Então, eu lembro que em várias sessões eu ficava só ali quietinha observando, ainda sem ter voz para poder falar sobre. Porque era tudo muito novo, era tudo muito assuntos em que eu ficava assim, ao mesmo tempo fascinada com medo e reticente de estar falando alguma bobagem”. Era só um início de timidez. Organizando os encontros ao lado de Rita, Miriam coletava relatos e se via cada vez mais forte e identificada com as questões que eram levadas para os debates. Mas o destino, além de pandemia, também lhe trouxe um grande obstáculo. “Eu tive que uma lesão de uma lesão pré-câncer no colo de útero. Isso também mexeu muito comigo porque foi o único momento que eu pensei ser mãe. Não porque eu queria a maternidade, mas porque talvez pudesse tirar essa escolha de ser mãe ou não. Mas fui muito abraçada pelos meus amigos”. 

“Exu é o caminho e ele mandou fazer o quê? Cuidar das pessoas” 

Miriam é coordenadora do MIP – Mulheres Independentes da Providência. Passando episódios de aprendizagem, atravessamentos pela interseccionalidade e superação obstáculos em relação à saúde, o Orixá da Comunicação nunca deixou de abrir caminho na sua vida. “Eu sempre falo que Exu é ele é muito tudo na minha vida, porque ele vai justamente naquilo que eu preciso seguir, que eu preciso caminhar. E ele vai colocando os movimentos e caminhos para que tudo aconteça quando tem que acontecer. Então, o Exu, ele é muito primordial na minha vida nesse sentido”.

Foto: Natália de Deus / Voz das Comunidades

E é quando surge o espaço novo no alto da Providência. E aí vem essa casa que eu perturbei muito porque eu queria pedir muito. E como uma boa filha de Exu, eu perturbei meu pai. Eu digo que essa casa também é uma forma de fugir um pouco das minhas obrigações religiosas, porque quando pedi a Exu, ele mandou fazer o quê? Cuidar de pessoas.”  

No MIP, esse trabalho já estava em exercício. “Aprendi muito com as mulheres do MIP. Principalmente com aquelas que verbalizavam ‘Ah, vocé que lidera a gente e a gente vai seguir conforme você vai nos orientando’. Os caminhos vão se cruzando e é desse cruzamento, que se tornou essa praça aqui perto que eu queria que essa espaço fosse um ponto de acesso para elas”, relata. Miriam investiu no novo espaço pensando nas mulheres do Morro. “Fica perto do teleférico, tem um lugar pra almoçar bem em frente. Quem está na parte de baixo, consegue subir e quem está lá em cima, consegue descer. Aqui é um ponto de trânsito bem bom!”. A casa nova já tem um nome e Miriam até revela para a nossa reportagem, mas ela prefere brincar com o mistério até o dia da grande inauguração, em julho. “Então eu pedi muito para o meu pai (Exu) também e eu falei: “Já que o senhor me deu aí um caminho, eu vou querer esse caminho para não só para o meu ouro em pó, mas para aquilo que eu vou ter de cotidiano”, relembra animada. O novo espaço será o local para oficinas, mentorias, acolhimento e fortalecimento para as mulheres do Morro da Providência e bairros próximos. Tudo para ajudar as mulheres a desenvolverem autonomia, criarem redes de apoio e conquistarem novas oportunidades de geração de renda. A iniciativa busca valorizar saberes locais e promover a troca de experiências entre mulheres de diferentes idades. Com isso, o espaço se torna um ponto de transformação social e cuidado no território. 

O espaço que receberá as mulheres é decorado com referências negras
Foto: Natália de Deus / Voz das Comunidades

“É uma casa que Exu vai me guiando o tempo todo, com movimentos, com trocas, com pessoas, com alegrias, com com os conflitos. Mas o que eu quero dessa casa é movimento, afeto e cura. Eu acho que eu definiria nessa As três palavras chaves assim, o que vai ser o campo. E é tudo aquilo que a chuva me dá. E é tudo aquilo que que eu devolvo. Daquilo que eu recebi.” 

Essa é a proposta de Miriam, uma engrenagem central que impulsiona e movimenta outras engrenagens, transformando todo um sistema de auxílio e liderança para com as mulheres do território. 

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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