Formada por famílias de pescadores por volta de 1948, a comunidade Marcílio Dias, conhecida como Favela da Kelson’s, fica localizada dentro do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Quem visita o lugar atualmente dá de cara com bairro de aspecto industrial, com vários galpões de armazenamento espalhados pelas ruas com nomes típicos que todo o brasileiro conhece. Rua do Arroz, Rua da Farinha e Rua do Fubá são alguns dos nomes que compõem essa região que, em 1982, recebeu a visita de Madre Teresa de Calcutá, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz naquele ano.
Recentemente, a comunidade foi tomada por um susto. Um grande galpão, onde funcionava um ponto de reciclagem e servia de trabalho para muitas famílias da favela, pegou fogo na noite de segunda-feira (27). Classifica-se como “susto” porque ninguém saiu ferido, mas isso não quer dizer que não tenha deixado marcas. Cerca de 20 famílias perderam absolutamente tudo que tinham.
Na terça-feira (28), o dia já tinha raiado e bombeiros ainda realizavam o rescaldo no local. Materiais de reciclagem são extremamente inflamáveis, então o processo teve que ser minucioso, uma vez que qualquer nova chama poderia dar continuidade à tragédia. A equipe do Voz das Comunidades esteve presente durante a atuação dos bombeiros no local
Para acessar a Kelson’s, é preciso seguir pela Avenida Brasil, como se estivesse saindo da cidade. No bairro Penha Circular, sair da via pela direita, saindo direto na rua do Alpiste. Devido ao intenso trânsito de caminhões pesados, muitos buracos estão bem aparentes no asfalto da via. E no final da rua que desembarcamos do carro do aplicativo 99.
Quem nos guia pelo local é Anderson Jedai, agente comunitário, jornalista, cria da favela da Kelson’s e amigo desde a infância do ator Douglas Silva (que cresceu na comunidade). Muito conhecido pelos moradores, entre um cumprimento e outro, Jedai explica como está o andamento das doações realizadas para a Kelson’s. “Graças a Deus está sendo ótimo. Estamos recebendo muitas doações. São camisetas, calças, tênis e cobertores para o pessoal que está desabrigado”. Poucos metros à frente, por cima dos telhados de casas que seguem ao longo da rua, já é possível o galpão que pegou fogo. No teto, pelas poucas telhas retorcidas que sobraram, já é possível ter uma dimensão do ocorrido. Antes de adentrarmos o espaço, Jedai nos guia pela lateral externa da estrutura. Na viela, o cheiro de queimado ainda é presente e poucos foram os pedaços de madeira que não viraram cinzas por completo.
A água empoçada ao longo da viela não serve apenas como espelho refletindo o pouco que sobrou das casas de alvenaria, mas também como memória do combate às chamas pelos bombeiros que atenderam a urgência da comunidade.
Retornando para a rua e contornando o galpão, encontramos um grupo de sete mulheres negras reunidas em volta de uma grande caixa d’água, cheia de roupas de doação. Elas organizam, separando o que é de adulto e o que é de criança. A atividade é repetetiva, mas o trabalho em grupo das mulheres é acompanhado por conversas e risadas. É a reflexão da união da comunidade em ajudar uns aos outros.
Sentada em uma cadeira, quem parece coordenar o grupo é Margareth Nascimento Pires, 49 anos, que trabalha com reciclagem. “Tenho maior prazer de morar aqui porque igual aqui não existe. Sempre trabalhei com reciclagem e criei todos os meus filhos assim. Batalhei por eles. E é assim com todas as crianças aqui da rua. O que eu puder tirar do meu bolso, eu tiro pra dar”, relata ela sem deixar de fazer a separação das roupas. Quando a caixa d’água parece estar chegando ao final, uma menina cruza a rua com uma bacia com mais roupas de doação. E o processo recomeça.
No meio da conversa paralela, Damião Souza, 52 anos aparece no meio do grupo. Ele veio acompanhar o processo de limpeza do galpão, após a perícia da Polícia Civil na parte da manhã. Por trás dos óculos, não esconde o olhar de preocupação e se lembra de quando começou o fogo. “Eu estava trabalhando aí dentro quando começou. Estava junto com o meu colega separando ferro quando escutamos o barulho do extintor. Quando fomos ver, era o incêndio. Peguei outro extintor e não deu pra usar. O pessoal estava indo atrás de água para apagar o fogo, mas quando abrimos a torneira, estava seca. Não tinha água na comunidade. Então começamos a tirar o que deu de dentro pra não ficar pior. Eu corri aqui pro lado do galpão para ajudar as pessoas a tirar os pertences delas.”
Damião conta que passou a noite no galpão para auxiliar os moradores no que pudesse, mas as chamas eram altas demais. “A nossa equipe foi rápida em tirar o que deu pra tirar. Mas as labaredas eram muito altas. Perdemos tudo. Perdemos todas as ferramentas de trabalho que tínhamos. Mas o mais importante é que ninguém se machucou.”
Dentro do galpão, é difícil distinguir objetos que sobraram. Ferragens retorcidas, garrafas e pedaços de plástico se acumulam em montanhas de resíduos. A água restante do que sobrou do combate às chamas transformou o piso em barro. Mas a vontade de continuar move a comunidade e algumas pessoas fazem uma limpeza no local. Usando luvas e botas, cerca de seis homens carregam as sobras dos materiais para dentro de grandes contêineres.
Alguns metros à frente, na mesma calçada, um grande galpão de alvenaria de cor azul se ergue como um local seguro. É no local que fica a Associação Centro Educacional Rebral (Acer), Unidade 9, parceira da Prefeitura do Rio de Janeiro, que serviu de abrigo para as pessoas nas primeiras horas do incêndio. Dentro, o espaço é imenso e, quando chegamos, as mulheres que gerenciam decoram o salão com bandeiras de São João, para receber as crianças da comunidade ainda naquela semana.
Quem nos recebe é Rosana Regina Bastos dos Santos, 35 anos, coordenadora da Creche Rebral da Kelson’s, que fala sobre como o espaço atuou e ainda atua como uma engrenagem fundamental diante do incêndio que atingiu o galpão vizinho. “A creche abriu ontem para fazer a parte burocrática. O CRAS e Clínica da Família vieram até aqui para fazer o cadastramento das pessoas que perderam pertences no incêndio. Em paralelo, servimos comida para as pessoas que vieram para cá. A Rebral também começou a fazer uma campanha para arrecadar cobertores, alimentos e roupas para crianças para fazer doações. Então estamos com uma parceria com a Associação de Moradores da Kelson’s para que eles façam a captação de doações e encaminhem para as pessoas que estão necessitando”. Rosana lembra que a creche estava fechada na hora do incêndio e a comunidade pediu a abertura justamente porque era o único lugar que tinha cisterna. “Abrimos. E o corpo de bombeiros entrou aqui com uma bomba para levar água até o galpão e apagar o fogo.”
Como última parada, Jedai nos leva para um dos locais que serve como abrigo temporário às famílias que perderam tudo no incêndio do galpão de reciclagem. No caminho, ele relata que a vakinha virtual utilizada para arrecadação de dinheiro para auxiliar as pessoas atingidas conseguiu ultrapassar a meta de R$30.000. A vakinha foi organizada pela equipe do ator Douglas Silva e, com o engajamento nas redes sociais, rapidamente o valor foi batido. Ele também fala sobre as doações de eletrodomésticos que estão chegando para as pessoas. “Fogão, geladeira, armário. É bastante coisa! A gente tá querendo utilizar um outro galpão (próximo ao que incendiou) para guardar isso tudo e repassar para eles.”
Andando pela rua de paralelepípedo em sentido oposto ao local do incêndio, poucos minutos são suficientes para chegar ao local. A direita de quem segue a rua, uma entrada estreita de degraus curtos nos leva a um salão no andar de cima de uma casa. Ali, algumas mulheres negras atravessam o momento delicado de se reorganizar mentalmente. Olhares sérios para um ponto do salão expressam uma preocupação com um futuro que parece ser algo incerto.
Uma delas amamenta uma criança de colo enquanto outras se divertem em uma cama elástica na janela. Do outro lado da sala, um casal e uma criança repousam sobre um cobertor fino que serve como colchão. A mulher, tampada com um lençol azul, dorme com a criança do seu lado direito. À esquerda, o homem bebe um copo de leite e também procura respostas para o futuro. Com o mesmo nome de uma celebridade do jornalismo, Glória Maria, 42 anos de idade, manicure, morava com o filho no barraco. “Pegou fogo em tudo. Perdemos tudo, documento… Tudo! Saímos com vida, que é mais importante, mas estamos vivendo na medida do possível”. Ela relata que os moradores estão ajudando bastante, solidarizados pela situação que estão atravessando e falou sobre a perda dos pertences. “É complicado! É triste! Mas Deus está no controle, dando força e as pessoas estão nos ajudando. Nós tínhamos poucas coisas, mas o que tínhamos era nosso e foi conquistado com muito suor e muito trabalho.”
Para apoiar as famílias atingidas pelo incêndio na Kelson’s, pode acessar a vakinha online neste link (https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajuda-familias-incendio-na-comunidade-da-10kelson-s), criado pela equipe do ator Douglas Silva. Doações podem ser feitas na Rua Dom Eugênio de Araujo Sales – Esquina com Sobral Pinto n°1 (em frente ao Rodrigo Material de Construção). As unidades da rede da Associação Centro Educacional Rebral também está aceitando doações em suas 11 unidades.
Texto: Rafael Costa
Fotos: Selma Souza
Produção: Gustavo Eduardo, Kelen Gladson
Revisão: Jonas di Andrade