OPINIÃO – Feliz dia das mães pra quem?

Por: Monica Cunha
Foto: Reprodução

Na última quarta-feira, uma cena na televisão dilacerou o meu peito. Na tela, a imagem de uma mulher, negra, periférica em desespero. Mais uma vez, a dor da mulher negra tratada como se fosse espetáculo.

Seu filho acabara de ser preso em flagrante por tentativa de assalto a um ônibus, próximo à Avenida Brasil. Ao tomar conhecimento do ocorrido, esta mãe se dirigiu à 38ª Delegacia de Polícia, onde a cena foi gravada. Chorando e mal conseguindo falar, ela pediu desculpas aos policiais e a todos os presentes, assumindo a culpa do ocorrido e demonstrando uma dor insuportável. Em seguida, se dirigindo ao filho, indagava o “por quê?”, e emendou: “é o presente que tu me deu no Dia das Mães?”. Por fim, questionou: Como foi capaz de fazer isso com ela, sabendo que ela ainda buscava o corpo de seu irmão?

Um desabafo em várias camadas que retrata o desafio de ser uma mulher, negra, mãe e periférica no Rio de Janeiro. Que sofre ao mesmo tempo com o machismo e o racismo estruturais que nos impõem dores e violências diárias.

Ao “assumir” a culpa, revela como o machismo estrutural impõe exclusivamente à mãe a responsabilidade pela educação dos filhos. No patriarcado, quando se fala da criação e do cuidado dos filhos, o dedo está sempre apontado para nós. Ninguém está preocupado se esta mulher cumpre dupla ou até tripla jornada de trabalho, na informalidade, para suprir as necessidades mínimas dos filhos. Não importa se as famílias das quais falamos são monoparentais, se essas mulheres foram abandonadas pelos homens com quem se relacionaram. Para esta sociedade hipócrita, culpa é substantivo feminino e exclusividade da mulher. E isso produz subjetividade e dor em todas nós.

É preciso reafirmar o que diz a Constituição Federal a respeito de crianças e adolescentes:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Desta forma, é importante dizer que o Estado, a sociedade e a família são igualmente responsáveis pela criação e desenvolvimento das crianças e adolescentes. Se há alguma falha, é necessário haver estratégias e políticas públicas que permitam assegurar o saudável desenvolvimento desses jovens. Infelizmente, essa é uma lei que nunca saiu do papel, reforçando o peso que toda a sociedade deposita em nossas costas.

Da mesma maneira, não podemos nos esquecer que essas mulheres são, na sua enorme maioria, negras, bem como seus filhos. E é na dor de mães negras que o racismo estrutural apresenta as suas duas faces mais cruéis: o genocídio da juventude negra e o encarceramento em massa. A herança da escravidão e a falta de políticas de reparação deste passado marcado por torturas, estupros e genocídio, faz com que nossos filhos não sejam vistos como humanos, exatamente como acontecia aos escravizados nesta terra, podendo ser submetidos às mais diversas violações de direitos, entre elas a tortura e até a execução.

Por fim, ao revelar estar em busca do corpo de seu filho, essa mãe escancara um dado alarmante e muitas vezes ignorado, embora cada vez mais presente nas periferias do Rio de Janeiro: o desaparecimento forçado. Ao ouvir esse relato, impossível não lembrar das Mães de Acari e tantas outras que passaram pela mesma situação, seja no período da ditadura, seja após e redemocratização. E segundo os dados oficiais, os números desses casos não param de crescer.

Este ano, completo 19 dias das mães desde que fui impedida de reunir a minha família para celebrar. Esse Estado Genocida impõe a mim e às minhas irmãs revivermos o luto e a dor todo segundo domingo de maio. O desabafo daquela mãe em cadeia nacional, infelizmente, é o desabafo de todas nós que fazemos do nosso luto a luta diária contra o racismo e o machismo deste Estado.   

Monica Cunha
Ativista e defensora dos direitos humanos no Brasil, especialmente direitos de crianças e adolescentes, criou o Movimento Moleque, é técnica em educação e ex-vereadora do Rio de Janeiro que criou a primeira Comissão de Combate da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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