OPINIÃO – Do Brasil acorrentado ao Brasil que não se cala – a comunicação popular e negra como levante contra o racismo estrutural

Foto: Uendell Vinicius / Voz das Comunidades

Por: Pâmela Carvalho

A comunicação popular emerge como um pilar fundamental na luta por justiça, especialmente em comunidades historicamente marginalizadas, como as famílias negras. Em tempos de crise de segurança pública e violência estrutural, a capacidade de contar nossas próprias histórias e moldar nossa narrativa se torna um ato de resistência. Viver a realidade de uma comunidade negra no Brasil implica enfrentar desafios que vão muito além do dia a dia; é um constante duelo contra a desumanização, o racismo e a invisibilidade.

Famílias negras, em sua essência, são guardiãs de histórias e experiências que revelam a complexidade das lutas enfrentadas. Elas não apenas vivenciam a violência, mas também se tornaram vozes ativas na busca por justiça. A comunicação popular se torna, assim, uma ferramenta vital para dar visibilidade às injustiças e promover a solidariedade entre as comunidades. É através dela que conseguimos resgatar a dignidade de nossos mortos e reivindicar os direitos de nossos vivos.

Um exemplo emblemático dessa luta é o caso de Igor Melo de Carvalho, meu primo. O que deveria ter sido um dia comum se transformou em um pesadelo para toda a nossa família. Igor estava saindo de um de seus trabalhos, na Batuq Casa de Samba, onde prestava serviço como garçom aos finais de semana para complementar a renda. Durante a semana, Igor trabalhava como inspetor de alunos na Faculdade Celso Lisboa, onde cursa Publicidade e Propaganda. Ao embarcar na garupa de uma moto por aplicativo, Igor e o motorista Thiago Marques começaram a ser perseguidos por um carro.

Igor chegou a ser baleado pelas costas, pelo policial militar da reserva Carlos Alberto de Jesus, que teria agido após sua companheira, Josilene da Silva Souza, ter reconhecido o condutor da moto como um dos responsáveis pelo assalto que sofrera horas antes.  Meu primo, estudante e trabalhador foi mantido sob custódia no Hospital Getúlio Vargas, sendo acusado de roubo. Assim, minha família começou uma saga buscando justiça pela vida física de Igor, mas também buscando provar sua inocência. Esta revitimização infelizmente é recorrente em casos de segurança pública no Brasil. A necropolítica tem matado e violentado nossos corpos, mas também nossas memórias e nossos nomes. 

Igor, que perdeu um rim por conta do disparo, recebeu alta no dia 2 de março de 2025. Durante a investigação, ficou comprovado que Igor e Thiago não cometeram o crime, e o Ministério Público do Rio (MPRJ) foi favorável ao arquivamento do caso. 

Em sua manifestação, a promotora Roberta Laplace disse que Thiago e Igor “não foram os autores” do roubo de celular narrado por Josilene. Segundo o MP, Igor e Thiago estavam “comprovadamente trabalhando” no horário estimado por Josilene como o momento do roubo. No dia 25 de fevereiro, a Justiça mandou soltar os dois.

No dia 29 de junho de 2025, a prisão de MC Poze do Rodo, nome artístico de Marlon Brendon Coelho Couto Silva, em sua residência no Rio de Janeiro, reverberou muito além das acusações iniciais de apologia ao crime e suposto envolvimento com o tráfico de drogas. O incidente rapidamente se tornou um catalisador para discussões sobre o racismo estrutural e a seletividade penal que afetam desproporcionalmente a população negra e periférica no Brasil.

A forma como a prisão foi conduzida, marcada pela violência e espetacularização, levantou sérias questões sobre os protocolos de abordagem policial. A imagem de Poze do Rodo sendo conduzido descalço e sem camisa, somada ao vazamento de documentos e informações pessoais e privadas, demonstra um tratamento que desrespeita a dignidade humana e viola os direitos fundamentais do indivíduo. Essa conduta contrasta flagrantemente com a forma como, muitas vezes, são tratados indivíduos de outras classes sociais e etnias em situações semelhantes, evidenciando uma diferença de pesos e medidas no sistema de justiça.

A rápida mobilização de diversos MCs, artistas e ativistas que denunciaram o caráter racista da prisão não é uma coincidência. No Brasil, a criminalização da cultura funk e de seus expoentes, em sua maioria jovens negros oriundos de favelas e periferias, é um fenômeno recorrente. Estudos e dados de organizações como o Instituto de Segurança Pública (ISP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) consistentemente apontam para a maior letalidade policial contra a população negra e para a super-representação de negros em prisões por crimes de menor potencial ofensivo, muitas vezes sem provas concretas de seu envolvimento.

A acusação de “apologia ao crime”, em particular, é frequentemente utilizada para criminalizar expressões artísticas que retratam a realidade das comunidades marginalizadas, enquanto outras formas de arte que explicitam a violência ou o crime são toleradas ou até mesmo celebradas. Essa interpretação seletiva da lei não apenas limita a liberdade de expressão, mas também reforça estigmas e preconceitos, perpetuando um ciclo de marginalização social.

Após cinco dias de intensa pressão pública, manifestações nas redes sociais e atos presenciais, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) concedeu Habeas Corpus e determinou a soltura do cantor, com medidas cautelares. Embora a decisão represente uma vitória da mobilização social e um reconhecimento de que a prisão inicial pode ter sido excessiva, ela também ressalta a necessidade de constante vigilância e atuação da sociedade civil para garantir a aplicação justa da lei.

A prisão de MC Poze do Rodo, portanto, transcende o caso individual e se torna um símbolo da luta contínua contra a criminalização da pobreza e da cor da pele no Brasil. Ela nos convida a refletir sobre quem o sistema penal realmente visa, a quem ele serve e como podemos desconstruir as barreiras raciais e sociais que impedem a justiça equitativa para todos.

A dor e a indignação que sentimos não são apenas pessoais; elas ecoam em cada mãe, pai, filho e filha que já foi violentado pelo Estado, direta ou indiretamente. A comunicação popular nos permite organizar vigílias, protestos e campanhas que não só pedem justiça, mas também educam a população sobre a realidade do racismo institucional. O nosso grito por justiça se transforma em um chamado coletivo para que a sociedade não se esqueça de que cada vida perdida é uma história interrompida, uma promessa não cumprida. A luta pela justiça é, portanto, uma luta pela narrativa. Quando as famílias negras se unem para contar suas histórias, elas desafiam as versões oficiais que muitas vezes desumanizam as vítimas. A comunicação popular nos permite desmascarar a retórica de que a violência é um fenômeno isolado, revelando sua raiz nas desigualdades sociais e raciais que permeiam a sociedade brasileira.

Além disso, a comunicação popular fomenta a construção de redes de apoio e solidariedade entre diferentes famílias que enfrentam situações semelhantes. Por meio de coletivos, organizações e mídias alternativas, conseguimos compartilhar recursos, estratégias e, principalmente, esperança. Os casos de Igor e de Poze, assim como de muitos outros, torna-se um símbolo de resistência e de luta pela dignidade de vidas negras. Cada vez que compartilhamos sua história, trazemos à luz a urgência de uma reforma nas políticas de segurança pública, que historicamente têm sido mais voltadas para a repressão do que para a proteção.

Por fim, é imprescindível que continuemos a resgatar e a contar nossas histórias. A comunicação popular não é apenas uma estratégia de luta; é uma forma de reescrever a narrativa da nossa existência. 

Pâmela Carvalho
Educadora, historiadora, gestora cultural, pesquisadora ativista das relações raciais e de gênero e dos direitos de populações de favelas.  É mestre em educação pela UFRJ. É coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” na Redes da Maré e representa institucionalmente a organização na secretaria executiva do Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) e na Coalizão Negra por Direitos. É editora na Revista Amarello e na Fast Company. É fundadora do Quilombo Etu, coletivo que trabalha a cultura popular a partir de uma perspectiva de educação antirracista. É coordenadora do Centro AfroCarioca de Cinema, responsável pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul. É Conselheira (Suplente) Estadual de Políticas Culturais do Rio de Janeiro e moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeiro.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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