Na madrugada de 10 de setembro de 2024, a ocupação “Deus é amor”, no bairro Carlito Pamplona, Grande Pirambu, sofreu um ataque brutal. Cerca de 500 famílias, que ocupavam um terreno abandonado há 30 anos, foram surpreendidas por homens armados e encapuzados, acompanhados por uma retroescavadeira. A ação violenta resultou na derrubada de barracos, disparos de armas de fogo e, tragicamente, na morte de Ana Mayane dos Reis Severino, uma jovem de 28 anos, mãe de uma menina de 4 anos. A cena de violência trouxe à tona uma dura realidade: a violência e a especulação imobiliária continuam sendo usadas como resposta à luta por moradia em Fortaleza.
O terreno em questão pertence ao Grupo Mota Machado e Fiotex Industrial , uma tradicional empresa do ramo imobiliário. Abandonado por décadas, o espaço foi retomado pela comunidade para suprir a demanda urgente por moradia digna, uma necessidade crescente nas periferias da capital cearense. Infelizmente, essa não é a primeira vez que ocupações no Grande Pirambu, maior favela de Fortaleza, enfrentam despejos violentos. O bairro carrega um histórico de lutas por moradia que remonta a várias décadas, e a especulação imobiliária sobre terrenos próximos ao litoral intensificou os conflitos fundiários na região.
A violência empregada contra as famílias da ocupação “Deus é amor” reflete a criminalização da pobreza e a negligência das autoridades em garantir o direito básico à moradia. O Estatuto da Cidade, previsto na Constituição, exige que terrenos sem função social sejam destinados a finalidades públicas ou de interesse social, como a construção de moradias populares. No entanto, o Estado parece ignorar essas demandas, permitindo que o poder econômico de grandes empresas prevaleça sobre a dignidade dos moradores da periferia.
A ocupação é composta majoritariamente por mulheres chefes de família, muitas com crianças e idosos. São pessoas que, diante da falta de alternativas, veem a ocupação como o único caminho para garantir um teto. A madrugada violenta não apenas destruiu seus barracos, mas também ceifou uma vida e espalhou o medo. Entre os encapuzados, conforme as investigações preliminares, estavam policiais afastados, revelando uma conexão perversa entre o poder estatal e interesses privados. Apesar da pressão popular e das manifestações, nenhuma prisão foi efetuada, e os culpados parecem estar sendo acobertados.
A população do Grande Pirambu reagiu com indignação e dor. No dia 10 de setembro, manifestantes tomaram as ruas, bloquearam vias, depredaram ônibus e clamaram por justiça. O luto pela morte de Mayane dos Reis é também o símbolo da revolta e da resistência que marcam a história desse território. A violência contra a ocupação não é apenas um ataque físico, mas também um ataque à própria dignidade humana e ao direito constitucional à moradia.
A moradia é um direito humano básico, mas, nas periferias, esse direito é sistematicamente violado. O histórico de ocupações no Grande Pirambu mostra que a cidade de Fortaleza foi, em grande parte, construída pela força e organização das comunidades que resistem à exclusão e ao abandono. Essas lutas estão intrinsecamente ligadas à falta de políticas públicas eficientes e à crescente especulação imobiliária, que afasta os pobres para favorecer o lucro de grandes empresários. A ausência de uma política habitacional justa agrava a precariedade de vida nas favelas e torna a moradia digna um privilégio de poucos.
Diante desse cenário, precisamos repensar o papel das autoridades e da sociedade civil na busca por soluções que não passem pela violência. O poder público tem o dever de garantir que o direito à moradia seja respeitado, promovendo políticas inclusivas que atendam à demanda das famílias vulnerabilizadas. A urbanização das favelas, a regularização fundiária e o combate à especulação imobiliária são medidas urgentes. Para que tragédias como a de Mayane não se repitam, é preciso que a justiça seja feita e que os responsáveis por essa violência sejam responsabilizados.
A ocupação “Deus é amor” permanece de pé, reconstruindo barracos e fortalecendo a sua resistência. As famílias exigem a posse do terreno, que, por décadas, esteve sem função social. A luta delas não é isolada; faz parte de um movimento maior, que reivindica o direito de existir nas cidades. Essas mulheres, crianças e idosos estão dispostos a continuar resistindo, mesmo diante das adversidades e do luto.
A história do Grande Pirambu é uma história de luta coletiva, de organização comunitária e de resistência. A violência não pode ser a resposta para a falta de moradia. O Estado precisa estar ao lado dessas famílias, garantindo seus direitos e promovendo a justiça social. O sangue de Ana Mayane não pode ser em vão. Que a sua morte seja o despertar para uma cidade mais justa, inclusiva e solidária, onde o direito à moradia seja respeitado, e a violência não seja mais uma ferramenta de opressão.
Texto: Coletivos Periféricos de Fortaleza
NOTA DE ESCLARECIMENTO DA CONSTRUTORA MOTA MACHADO
“A construtora Mota Machado esclarece que nunca foi proprietária de terreno localizado no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza. A Mota Machado lamenta profundamente os ocorridos e se solidariza com as vítimas, reafirmando seu compromisso com a ética e o cumprimento das leis.”
NOTA DE ESCLARECIMENTO FIOTEX
A Fiotex informa que, no final da tarde da sexta-feira (6), foi oficiada pela Polícia Militar que seu terreno no bairro Carlito Pamplona estava sendo alvo de demarcação irregular. De imediato, ainda no mesmo dia, registrou um boletim de ocorrência no 34º Distrito Policial.
Na madrugada da terça-feira (10), a empresa adotou as medidas para cessar a demarcação ilegal. Não havia moradores no terreno. A ação foi testemunhada por policiais militares e ocorreu de forma pacífica por quase duas horas. A equipe foi surpreendida por agressores vindos de fora do terreno, arremessando pedras, ateando fogo e realizando disparos contra todos que se encontravam no local e seus arredores. O trator utilizado na ação foi destruído e incendiado, e dois colaboradores ficaram feridos e levados para um hospital particular.
A Fiotex não compactua com atos de violência. A empresa está à disposição dos órgãos de segurança para colaborar com as investigações e se solidariza com a família da vendedora Mayane Lima e com todas as outras vítimas. A empresa é proprietária do terreno há mais de 20 anos. O imóvel está registrado na matrícula 3507 do Cartório da terceira zona.