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Favela luta para ser reconhecida como humana, para então falar em direitos humanos

Conversa de direitos humanos na periferia gera interrogações, e culpa é do egocentrismo da militância
Atividade no Recife do projeto Juventudes nas Cidades, da ONG Fase, em 2019 - Yane Mendes

Por: Fernanda Paixão e Yane Mendes, para PerifaConnection, na Folha de S.Paulo

Escrever sobre direitos humanos sendo da periferia às vezes é visto como uma contradição, já que esse assunto que foge da realidade de quem mora nesses locais. Chegar na favela falando sobre esse tema faz com que várias interrogações surjam na cabeça da galera.

A culpa não é dessas pessoas. A culpa talvez seja do egocentrismo da militância, que se autointitula organizada, em achar que o diálogo possível acontece a partir do uso de termos que muitas vezes são pesquisados no Google para satisfazer a imagem do “mais sabido” (termo que vovó usa).

Na época em que o Brasil ainda era uma colônia, os europeus impuseram o seu poder e a sua cultura para as populações locais. A sociedade brasileira foi construída com uma base eurocêntrica.

A população negra foi e ainda é uma das mais afetada pela supervalorização dos brancos a partir do processo de escravização. De acordo com o IBGE (2019), 19,2 milhões de brasileiros se declaram pretos e 89,7 milhões pardos. Para o instituto, os dois grupos, com quase 109 milhões de indivíduos, formam a raça mais numerosa do Brasil: a negra.

A segregação e o menosprezo impediam dos brasileiros de se autorreconhecerem como negros e o Estado e a sociedade de tomarem iniciativas de reparo e inclusão. Após o fim da escravidão e a industrialização, o Estado não criou um planejamento de inserção social para a população negra. Sem acesso a direitos básicos como educação, saúde e segurança, a marginalização foi inevitável.​

Se por um lado as favelas são vistas como a mistura de ritmos e de pessoas alegres, acolhedoras e trabalhadoras que constroem a base do Brasil, por outro não podem ser lembradas de forma romântica. Falta acesso a direitos essenciais para a existência de seres humanos.

Atividade no Recife do projeto Juventudes nas Cidades, da ONG Fase, em 2019 - Yane Mendes
Atividade no Recife do projeto Juventudes nas Cidades, da ONG Fase, em 2019
Foto: Yane Mendes

A carência que diferentes povos sentem de serem reconhecidos mostra como é incoerente o discurso que somos todos iguais. Em um cenário em que a expectativa de vida, as oportunidades de emprego, o direito de ir e vir são menores e as ameaças de acordar com um chute da polícia na porta de casa são maiores, que é o caso nas periferias, como falar em direitos iguais? Como inserir essas diversas realidades dentro desse termo? Não conseguimos e não queremos unificar o que já é separado pelo sistema.

Ampliar o debate significa sair da simplificada leitura de livros. O ideal é ler a vida das pessoas, que não têm noção do valor dos seus trabalhos e do significado de suas existências no mundo.

A palavra vale ouro na favela. A defesa de algo ou de alguém vai da guerra ao amor nesses territórios. Em seus “discursos bonitos”, alguns defensores fogem das perguntas: “que população é essa?” e “até onde é o limite desse defender?” É tanta desestrutura vivida por meio de planos bem arquitetados que fica difícil de saber por onde começar a pontuar. Na prática, essas pessoas são jogadas à própria sorte em casas amontoadas em morros ou becos com estruturas precarizadas. Enquanto para uns é apenas um som agradável, para outros a chuva é o desespero de se perder tudo, inclusive a própria vida.

Reconhecer quem luta pelos direitos humanos é necessário e urgente.

Nicoly, 14 anos, moradora da Cidade de Deus, zona norte do Recife, dá aula de reforço para as crianças do ensino fundamental na favela que mora. Essa não é uma ação que faz a diferença na educação brasileira?

Marginal Zo, moradora da favela do Coque, jovem poeta marginal, trabalha como ambulante dentro do metrô da cidade. Entre um vagão e outro, troca ideia com outros vendedores. Em muitos casos, os trabalhadores informais do metrô não conseguem uma oportunidade de trabalho por terem saído da cadeia. Isso não é trabalhar linguagem, diálogo e auto-organização?

Vendo essas atitudes locais, fica a pergunta: onde que pega a carteirinha que legitima quem “realmente” defende esses tais Direitos Humanos?

Durante a pandemia, os ônibus estão lotados e as passagens aumentando, e pessoas que vivem e moram em Suape, no Pernambuco, são pressionadas pela construção de um porto. O trabalho escravo ainda existe em muitas regiões.

O nosso enfrentamento à ausência de direitos humanos não cabe na romantização do termo microempreendedorismo. Nos reinventamos. Não porque tudo é poético! É que a fome chegou junto com o vírus e o que era ruim piorou e aí que sempre buscamos outros caminhos para não nos entregarmos.

A gente sabe a cor e a classe de quem tá morrendo mais nesta pandemia. Sabemos quem vive o caos da saúde pública, o não direito à moradia, as ameaças de a barreira cair em cima de casa na chuva e a dor da fome. Aliás, quem consegue comer hoje com o preço dos alimentos como estão? Afinal, o direito de que humano estamos falando?

Fica difícil se reconhecer como gente quando todo dia ligamos a TV e os teus estão sendo apresentados como números de mortos que não param de crescer. Estar na interseção de todas essas problemáticas é prejudicial para a construção de um futuro.

Como haverá futuro se estamos em meio a um derramamento de sangue que mostra a existência do genocídio dos nossos jovens? Não há perspectiva nessa prisão de monocultura e de falta de acesso.

O Brasil precisa reconhecer os defensores vivos e proteger quem bota a cara na frente das armas do sistema. E, sim! Estamos falando literalmente levando arma na cara. Não é sobre ser super herói, mas é dizer que o Professor Xavier não teria salvado ninguém se não fosse o “time do X-Men” na rua com corpo na luta. Não é escolhendo um ícone que as coisas vão mudar. Talvez o que falta é definir a estratégia de se falar sobre essa importante pauta.

Conversar tomando um litrão com a vizinha com um brega no cebrution, plantar uma mudinha de qualquer coisa no terraço de casa com as crianças, passar na rua e acenar para os idosos, dividir a mangueira quando chega água na casa, dividir a cesta básica com o outro como já fizemos antes da pandemia e agora cada vez mais. Teríamos milhões de estratégias para citar. Isso é a favela que tá na luta de ser reconhecida como humanos para depois a gente conversar sobre direitos.

Fernanda Paixão
Product designer da Favela do Detran, no Recife, e coordenadora da Rede Tumulto

Yane Mendes
Cineasta periférica da Favela do Totó , no Recife, e coordenadora da Rede Tumulto

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo.

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Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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