Em Yorubá, Oboró é um termo usado para denominar orixás do gênero masculino
A peça “ Oboró – Masculinidades Negras” está em cartaz no Teatro Municipal João Caetano, no Rio de Janeiro, desde o dia 09 de janeiro de 2020 e ficará até o dia 09 de fevereiro. Como não podia ser diferente, já que fala sobre masculinidades negras, a obra, cujo texto é de autoria de Adalberto Neto, e tem a direção de Rodrigo França, tem seus personagens interpretados apenas por homens negros, de diferentes idades, de diferentes tons de pele negra, de diferentes formas física.
Com uma longa carreira na arte, Rodrigo França fala sobre experiência de ser um homem negro, dirigindo uma peça só com atores negros, que fala sobre masculinidades negras.
“Na verdade, eu sempre acredito que quando a gente tem um poder de determinar aquilo que a gente quer falar e quer fazer, a gente tem que oferecer da melhor forma possível. Quando a gente pode assinar o cheque, a gente tem que pensar no coletivo, e eu não consigo não pensar no meu povo preto. E quando caiu no colo de montar esse espetáculo, falei: é a grande oportunidade de discutir negritude, não numa narrativa hegemônica, racista, e sim, que vai respeitar a subjetividade, que vai respeitar o não maniqueísmo que qualquer ser humano tem. A gente pode ser tudo! Eu me sinto honrado, não estou inventando a roda, meu propósito nunca é esse, até porque seria impossível, não estou inventando nada. Outras pessoas já falam de masculinidade negra, e é bom, nem masculinidade, é masculinidades negras, que são diversas. Só que a forma de eu me expressar é nas artes cênicas. Eu me sinto em festa em poder dar voz a muitos homens e que dificilmente são muito bem representados a partir de uma arte que é branca e às vezes, muitas vezes, embranquecida. ”
O ator e diretor, sempre que pode determinar e decidir, opta por ter uma ficha técnica de cem por cento composta por pessoas pretas. Ele acredita que o protagonismo não deve ser oferecido só em cena, mas também fora dela, por isso a importância também de se ter uma equipe técnica de criação formada por pessoas pretas. “A gente precisa rever esse mercado, a gente precisa fazer com que essas pessoas que são altamente competentes estejam no mercado desenvolvendo sua função artística e principalmente técnica. ”
Questões como hipersexualização, sexualidade, paternidade, fases da vida de um homem, fé, ancestralidade, relações fraternais, tudo isso da perspectiva da vivência de homens negros, que lidam com todos esses temas de maneira bem diferentes de homens brancos, sobretudo porque nossa existência foi e continua sendo animalizada, são debatidas de maneira lúcida, profunda e emocionante na peça.
Perguntado sobre a importância de falar sobre masculinidades negras em forma de arte, principalmente nessa sociedade que animaliza e mata homens negros, Rodrigo respondeu:
“A importância de eu falar sobre masculinidades negras, é oferecer uma narrativa digna a esses homens pretos que normalmente são colocados como os grandes vilões da sociedade. Esse homem preto erra, mas ele também acerta. Eu quero trazer uma exemplificação de uma masculinidade negra positiva para as crianças e adolescentes da minha família e da família de qualquer pessoa que esteja ali no teatro. Se fala tão de uma maneira negativa como verdade absoluta, que é necessário a gente mostrar que tem de tudo, inclusive masculinidades negras que vão acrescentar e que vão somar, que vão servir de exemplo para muitas gerações”
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Em 28 anos de vida, quase 29, Oboró foi a primeira grande peça que assisti. Sendo eu de uma cidade do interior da Bahia, onde cultura e entretenimento não são áreas valorizadas, assistir peças nem sempre é possível ou barato. Eu me vi ali representado, vi minhas angustias, meus medos, mas vi também o prazer que eu tenho em ser um homem negro, em ter amigos negros, mesmo com toda violência que sofremos todos os dias. Eu vi meu pai ali. Certamente, se ele estivesse vivo, e se tivéssemos a oportunidade, eu o levaria para assistir a peça. Oboró é sobre mim, sobre meu pai, sobre meus amigos, sobre meus primos, sobre meu avô… Oboró é sobre os meus ancestrais. É sobre os orixás: Exu, Ogum, Oxossi, Igbji, Ossain, Omulu, Oxumaré, Iroko, Xangô e Oxalá. Interpretados pelos atores Cridemar Aquino, Danrley Ferreira, Drayson Menezes, Ernesto Xavier, Gabriel Gama, João Mabial, Jonathan Fontella, Luciano Vidigal, Marcelo Dias, Orlando Caldeira, Paulo Guidelly, Reinaldo Junior, Sidney Santiago e Wanderley Gomes. No palco também estão presentes três músicos.
“O personagem que eu faço é o Kinho, ele surge muito ligado a essa figura de Exu, abrindo o espetáculo, e é um personagem que tem uma relação muito forte com a infância, é uma infância que se dá ali nos anos 60, onde a gente tem uma dificuldade enorme da população negra, muito ainda localizada à esses trabalhos braçais, à precariedade financeira, a precariedade material, mas acho que o que tem de bonito nessa relação, é a história do pai, que apesar de tudo essa família através do amor tenta se construir no espaço.”
Ainda de acordo com o ator Sidney Santiago, a peça vem justamente num momento do Brasil onde começa a se debater sobre masculinidades negras.
“Falar sobre masculinidades negras é falar também sobre opressão, é falar sobre a luta do antirracismo negro, então nesse contexto eu acho que é muito positivo a gente ter em 2019/2020 uma montagem, levando pra cena, acho que de uma forma que tem um certo ineditismo, que são a reunião de histórias de homens negros e essa relação com o panteon dos Orixás. Então, eu me sinto muito privilegiado de estar nesse momento da história onde a gente tem um desmanche da cultura, onde a gente observa claramente um projeto de poder que tem se esforçado sobretudo pra destituir a parte da cultura brasileira e a gente está resistindo de pé, anunciando e levando pro público histórias de homens comuns, histórias de homens negros.”
Danrley Ferreira, afirma que começou a se ver como um homem negro depois da experiência num reality show, o ator ainda diz que depois disso, é inevitável não mudar a percepção sobre muitas coisas, nas nossas vidas e na sociedade, que começa aí um processo de entendimento sobre o que nos acontece. Ele fala um pouco sobre seu personagem, sobre as questões abordadas na peça que conversam com sua vivência enquanto um homem preto.
“Atuar em Oboró é uma parada muito boa, em questão de energia, em questão de sabedoria. Quando o Rodrigo me convidou e eu aceitei e a gente começou a ensaiar para o espetáculo e eu peguei o texto para ler, ali já foi um baque, porque é um texto muito denso, ele cospe muita informação importante, muita coisa que a gente vive, que a gente passa, e que a gente passa isso para o público. O meu personagem mesmo, fala sobre a criança preta que não pode correr na rua senão pode ser confundida com um bandido. Eu moro na favela da rocinha, nasci aqui, e cresci aqui, então eu peguei momentos de muita tensão aqui de violência, onde tinha operações policiais, que a gente não podia sair na rua direito porque senão a gente poderia ser confundido com um bandido e tomar um tiro ou ser preso, a gente não sabe. A minha mãe até hoje tem medo que eu saia de preto, que eu saia a noite, enfim, esse tipo de coisa que toda mãe de jovem negro que mora na favela tem. A questão de trabalhar precocemente também, o jovem negro, por muitas vezes, pela condição social, ele é incentivado a começar a trabalhar cedo, comecei bem cedo também…”
Falar sobre Oboró é também falar sobre o teatro negro Brasileiro. Rodrigo e Sidney relatam como é fazer teatro negro e a importância do mesmo.
“Fazer teatro negro não é fácil, né. Aliás fazer qualquer atividade onde majoritariamente os profissionais são negros, não é fácil. A gente está aí na luta, na resistência, eu não romantizo a resistência, eu acho desnecessário. Mas só evidência que a gente vive um país racista quando a gente vai verificar que sempre nossos corpos estão ali na resistência e outros corpos são bem patrocinados e a gente não. ” Rodrigo França.
“…então eu me sinto muito feliz de estar somando nesse grupo, que é uma continuidade nada mais dessa pratica que a gente pode localizar como 150 anos que é o teatro negro brasileiro que surge como um braço dos movimentos negros para pleitear cidadania, para pleitear direitos, para pleitear humanidades” Sidney Santiago
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Oboró é uma peça indispensável, não só para os homens negro. O teatro negro precisa e merece ser valorizado e visto. Essa é a última semana em cartaz no Rio de Janeiro, mas segundo o diretor, a peça vai rodar o país, em abril estará em Curitiba, e também estão em negociação para uma temporada em São Paulo, e com intenções de ir para Cabo Verde e Angola. “É isso, a gente quer rodar, enquanto a gente tiver força, e a gente tem muita força, a gente vai continuar resistindo” Rodrigo França.
Imagino que tudo que foi dito aqui foi o suficiente para te convencer a assistir a peça, mas se ainda não foi, não tenho dúvidas de que você não vai resistir ao convite de Danrley e de Rodrigo.
“Eu gostaria de convidar a galera para assistir nosso espetáculo lá no Teatro João Caetano, essa é nossa última semana, acaba dia 9 de fevereiro. A gente está numa temporada popular, os ingressos estão a partir de 10 reais. Então eu acho que você não tem motivo para não ir assistir, 10 reais é um precinho bem bacana para todo mundo poder ter acesso ao teatro. É um espetáculo muito legal, que é iluminado, que tem sido bastante reconhecido, fico muito feliz…” Danrley Ferreira
“Não só assistir Oboró, mas assistir qualquer espetáculo que compõe o teatro negro brasileiro, vá se enxergar em cena e fora dela, vai se enxergar como potente, vai se enxergar no teatro negro aonde a maioria da plateia é preta, vai se olhar num espelho de tamanho poder e beleza” Rodrigo França.