6.160 pessoas foram mortas por policiais civis e militares no ano de 2018, uma média de quase 17 mortes por dia. A proporção de negros e pardos entre os mortos pela polícia no Rio cresceu em 2019, com um aumento de 23% para 27%, já a de pardos cresceu de 48% para 51% (Microdados do Instituto de Segurança Pública (ISP), obtidos pelo EXTRA via Lei de Acesso à Informação). Rodrigo José de Matos Soares, policial militar, foi responsável por assassinar a menina Agatha Félix de 8 anos, aumentando a estatística de 6 crianças mortas nas favelas cariocas. Na segunda maior favela de São Paulo, Paraisópolis, 9 pessoas morreram e ao menos 20 ficaram feridas durante uma operação policial não planejada. Enquanto isso, o atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, afirma que “a polícia vai mirar na cabecinha” e João Dória, governador de São Paulo, diz que “vai atirar para matar”.
A carne mais matável pelo Estado é a carne negra. O que estamos vivendo hoje reforça uma lógica óbvia: o Estado é genocida, sabe onde tem que matar e quem matar. Mesmo após o fim do período escravista, a desumanização e as estratégias de eliminação continuam, ainda que de um outro modo, é claro, mas continuam. Esse resquício colonial fomenta a ideia que o destino de um corpo negro toma um outro rumo se comparado ao branco, uma morte provocada por violência racial e de modo seletivo.
Existe um único critério para decidir quem vive e quem morre: o critério racial. Essa mesma dinâmica age simultaneamente para favorecer o grupo racial posto como hegemônico, o patriarcalismo branco, em detrimento de um outro grupo racial tratado como inferior.
Partindo da ideia de que o direito à vida é um direito essencial, dados mostram que o próprio Estado não cumpre com êxito tal proposta, agindo não para legitimar esse direito. Na realidade cotidiana, o Estado colabora para uma ruptura e infringe corpos sociais no contexto de desigualdade e vulnerabilidade.
É fundamental entender também que o direito à vida não é apenas não ferir um corpo de modo físico, é também negar direitos que precisam ser garantidos por lei independente de raça e classe: o trabalho, a saúde, a terra, o alimento, a educação. Quando direitos básicos e políticas públicas não são ofertados, sendo recursos mal investidos e não atingindo a população de modo igualitário, se tem ainda uma violação e ofensa ao direito à vida.
O que se pode esperar de um Estado que tem ânsia para não respeitar a vida da população preta e pobre? De tudo, menos respeito. A ação do Estado produz uma série de atos que acobertam os agressores e punem a população negra, garantem impunidade aos violentadores e aos agressores. A justiça não é cega, ela enxerga a cor da pele, quanto mais escura, mais se torna uma marca estigmatizada.
Temos duas faces de uma mesma moeda enferrujada: Wilson Witzel, um governador que celebra e comemora a morte; e do outro lado João Dória, um governador que afirma para imprensa que a atuação da polícia, após a morte de 9 adolescentes em Paraisópolis, não vai mudar.
A licença para matar pobres e favelados é uma realidade que vem sendo consolidada por sucessivos governos, inclusive em nível nacional. A própria polícia aconselha que não se deve resistir ao assaltante. E a quanto a nós, como reagir ao Estado? Estamos em 2020 e a perspectiva de uma segurança pública isenta de extermínio está longe.