Estamos em 1964. Estados Unidos. Época de efervescência social e cultural em todo o mundo. Uma jovem, Kitty Genovese, caminha durante a madrugada para o apartamento da sua namorada. Um barulho atrás chama sua atenção, e ela percebe que está sendo seguida por um estranho. Seu instinto a faz correr, mas ela é pega pelo homem, que desfere duas facadas contra seu corpo, além de relatos de ter estuprado-a. Kitty é atendida horas depois, mas acabou morrendo no caminho. O New York Times publicou um artigo sobre o tema afirmando que durante mais de meia hora, 38 cidadãos respeitáveis, cumpridores da lei, no Queens, viram um assassino perseguir e esfaquear uma mulher, em três investidas separadas e sucessivas, no Kew Garden. Ninguém chamou a polícia durante o assalto; uma testemunha telefonou depois que a mulher estava morta.
O crime chocou a sociedade norte-americana, não pelos requintes do assassinato, mas por ter acontecido diante de dezenas de espectadores que inexplicavelmente não fizeram nada para ajudar Kitty. 38 pessoas. Um número considerável de cidadãos. Homens e mulheres, filhos de uma sociedade que em tese deveria respeitar o respaldo de zelar pela vida em sociedade, deturparam esse principio social; e diante da agonia do outro, se limitaram a ver e nada fazer.
Emmanuel Lévinas, pensador do século passado, afirmava que com as mudanças sociais ocorrendo, deveríamos buscar uma forma mais humana de se viver em sociedade, onde cada um deve ter responsabilidade pelo próximo. Responsabilidade. Uma palavra rica em interpretações e sentidos. Folheando um dicionário em busca do seu significado, me deparei com o seguinte enunciado: “Obrigação de responder por certos atos; dever, obrigação”. Em linhas gerais, podemos definir em uma palavra: Dever. Trazendo para o nosso contexto, atribuo da seguinte forma: dever de ajudar o Outro quando este precisar.
A indiferença é uma característica dominante nessa sociedade que clama o social, mas no fundo regozija pelo individualismo. O Outro não me interessa até que eu possa extrair dele o que preciso. O Outro não é agradável aos meus olhos, enquanto ele não servir aos meus propósitos. Mas afinal, qual o sentido de ser assim? Qual o sentido de muitas vezes viver para si em detrimento do Outro? Trago a historia de Kitty Genovese como um alerta para esse mal que está engolfando todos nós. A apatia pelo Outro é um câncer desse mundo. Não podemos nos enganar: Olhar em excesso para si mesmo leva a ruína. Basta lembrar-se de Narciso e o lago refletindo sua imagem. E mesmo que haja previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro para casos como o de Kitty Genovese, a minha indagação é: Será que até o Estado tem que te forçar a ser solidário com o Outro?
O caso da moça Kitty se tornou tão célebre que uma teoria se formou a partir de sua historia: a síndrome Genovese. Esse fenômeno social pode ser observado pela apatia dos espectadores em situações de tensão ou de perigo quando o fato está sob a observação de diversas pessoas. Se existe o Outro que pode ajudar, porque eu o irei fazer? É uma outra indagação que não deixa de ser preocupante.
E por fim, permito-me pensar em Kitty. Se ela estivesse viva, seria hoje uma senhora de idade avançada, com uma família, amigos e uma vida inteira preenchida. Teria passado por momentos intensos, felizes e infelizes. Em suma, teria vivido! Mas pelo descaso de dezenas de espectadores, sua mortalidade foi ceifada antes que ela pudesse usufruir de todos os estágios da sua vida…
SOBRE O AUTOR:
Kássio Henrique Aires é estudante de Direito na Faculdade Católica do Tocantins – FACTO. É membro do Diretório Central Estudantil – DCE/FACTO, além de bolsista pesquisador na área de Direitos Humanos e monitor da matéria de Direito Penal II do curso de Direito. Já publicou artigos nos sites Empório do Direito e JusBrasil.