No universo da Ballroom, ser ‘Legend’ é muito mais que um título. É ser pilar, é sustentar uma comunidade, é construir futuro. E quando esse título ecoa na favela, ele carrega potência, ancestralidade e revolução. Lua Brainer é isso. Legendary, matriarca, educadora, artista e referência incontestável da cena Ballroom no Rio de Janeiro e na Maré.
Lua não apenas dançou Vogue. Ela fez da dança uma arma, da estética uma política e da performance uma estratégia de sobrevivência. Mais que isso, transformou o Complexo da Maré em território legítimo da Ballroom carioca e espaço de formação para corpos dissidentes.
“A Ballroom não pode ser só do centro, só da zona sul, só dos espaços brancos e cis. Ela também é da favela, também é da Maré. O território é nosso, e ele também performa, também cria, também inventa futuro”, afirma Lua.

Cria do Pinheiro, na Maré, Lua carrega uma história marcada por abandonos, violências e ausências. Foi criada por uma mãe adotiva, mulher preta e retinta, após sofrer abandono recém-nascida. “Minha mãe me pegou no colo e disse: ‘Essa aqui eu vou criar’. E me criou. É por ela que eu tô viva. Minha mãe é meu chumbo, minha proteção, minha base”, relembra.
Desde criança, Lua já sabia quem era. “Acordei diferente. Cresci sendo a única LGBT que eu conhecia na Maré. E isso também forjou quem eu sou. Era eu e eu”, conta.
Foi na juventude que ela encontrou a Ballroom, primeiro pelo Orkut, depois nas vivências no centro do Rio, entre os desafios da rua. E foi ali, observando, aprendendo e se jogando nas experiências, que começou a construir sua caminhada na cena. “Quando eu descobri que Vogue não era só uma revista, mas um movimento, uma dança, uma cultura, eu falei: ‘Isso aqui também é pra mim’”, relembra.
Mas Lua percebeu que a cena Ballroom, concentrada no centro, ainda era excludente. “Era perrengue. Já cheguei em Ball sem saber se ia conseguir voltar pra casa. Era busão, era sem dinheiro, era na luta. E, muitas vezes, sendo olhada atravessado, porque ser travesti da favela dentro desses espaços é passar por racismo, transfobia, exclusão.”, lembra. Foi aí que ela tomou uma decisão: “Eu pensei: pera, se não tem pra gente, eu vou criar. A Ballroom tem que ser também da Maré. A gente também tem direito de performar, de se amar, de existir com dignidade aqui”, afirma.
A partir desse movimento, nasceu a Ballroom Maré, a primeira Ball regular dentro do território. Mais do que uma competição de categorias, a Ball se transformou em espaço de fortalecimento, acolhimento e construção de comunidade. “Hoje não é mais só sobre um close. É sobre saúde, sobre segurança, sobre alimentação, sobre permanência. É sobre dizer pra quem vem depois: você pode, você é possível, você não tá só”, diz Lua.
Ser Legendary, explica ela, não é só sobre ser reconhecida pela cena. É sobre responsabilidade. “Ser Legend é ser referência, é segurar a comunidade, é maternar. É fazer o corre acontecer, é abrir caminho pra quem vem”, define.
A Ballroom virou também uma ferramenta pedagógica. Na Casa das Mulheres da Maré, onde Lua atua como educadora, ela oferece formação para mulheres do território em gênero, raça, sexualidade e direitos. “Quando eu cheguei na Casa, entendi que não era só sobre dar aula. Era sobre construir legado. Era sobre perguntar pra essas mulheres: quem ensinou você a odiar sua favela? Quem ensinou você a se odiar?”, relata.
O impacto é concreto. “Só na minha entrada na Casa, a gente já formou mais de 150 mulheres. É uma formação pra vida. Tem mulher que chega lá sem entender porque a pauta de gênero atravessa ela. E sai de lá entendendo, se posicionando, se fortalecendo”, explica.
E Lua reforça: “Eu disputei essa vaga na Casa das Mulheres com gente que tinha doutorado. E eu não sou doutora, mas minha vivência como travesti preta de favela é o meu doutorado. É minha formação”, afirma.

O trabalho de Lua atravessou fronteiras. Neste ano, ela foi a Paris, convidada para apresentar o filme ‘Salão de Baile’, que conta sua trajetória e a construção da Ballroom na Maré. “A Ballroom da Maré hoje tá no mapa. No mapa do Rio, no mapa do Brasil e no mapa do mundo”, diz com orgulho.
Uma comunidade que gera perspectivas para o futuro
Se antes Lua olhava pra Maré e não encontrava referências, hoje ela é essa referência para toda uma geração. “Quando eu era criança, não tinha espaço, não tinha ninguém pra me acolher, pra dizer que eu podia ser quem eu sou. Hoje eu sou essa pessoa. E eu quero que as crianças da Maré tenham o que eu não tive”, afirma.
“A gente não nasceu para estar só na rua, não. A gente pode ser professora, pode ser diretora, pode ser gestora, pode ser artista, pode ser o que quiser. E é isso que eu tô construindo: presente, futuro e legado”, completa.