Aqui no Voz das Comunidades, sempre estamos procurando dialogar com todas as favelas do Rio de Janeiro. Afinal, esse é o nosso chão. Mas, no nosso processo de expansão nos últimos anos, percebemos que a palavra “comunidade” não se resume apenas às favelas do Rio. Existem vários tipos de comunidades espalhadas por todo o Brasil.
Quando falo do Brasil, não estou me referindo àquela ideia de bolha social, como o X/Twitter costuma fantasiar. Não. Estou falando de grandeza mesmo. O Brasil é um país intercontinental, e todas as comunidades respiram arte e cultivam cultura graças a nomes que estão fazendo a diferença nos territórios onde vivem – de forma direta e/ou indiretamente. E temos que celebrar muito, ainda mais quando determinada manifestação, esta sendo uma iniciativa preta, nasce em uma parte do país conhecida por ser “branca demais”. E ao contrário do que muitos pensam no sudeste do Brasil, tem preto no sul; e sua comunidade ganha amplitude com muito esforço e anos de atividades, palavras de consciências, rodas de reflexões, oficinas de criações e personagens de arte. Muita arte.
Tudo isso se encaixa perfeitamente nessa ideia é o movimento do rap. Criado na Jamaica, na década de 1960, chegou aos Estados Unidos na década de 1970. O Brasil só foi conhecer o movimento nos anos 1980. Na década seguinte, o rap explodiu no Brasil com nomes como Sabotage, Planet Hemp, MV Bill e o muito lembrado grupo Racionais MC’s. Com suas músicas, jovens das periferias se viram representados, justamente por retratarem o cotidiano das ruas e das quebradas. Entre linhas e rimas, o rap ganhou adeptos e fãs. E, englobando o rap, o grafite, o estilo e a atitude, chegamos à cultura hip hop — onde se reúnem todas as características que moldam os mestres de cerimônia, os DJs, os rimadores, o improviso, as roupas, os discos… a manifestação da arte como um todo.
No caminho da preservação da cultura hip hop, bem como sua importância para antigas e novas gerações, nasce o Museu do Hip Hop RS — o primeiro museu dedicado exclusivamente à cultura hip hop. E onde ele está localizado? Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O que hoje é museu começou com a Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, fundada pelo escritor, MC e ativista social Rafa Rafuagi, em 2012. De reconhecimento nacional e internacional, a carreira de Rafa Rafuagi é imensa. Natural do Rio Grande do Sul, iniciou sua trajetória em 2002, aos 13 anos, após contato com a cultura hip hop em uma escola pública.

Gravou seu primeiro trabalho em 2004, em CD demo, que ele mesmo levava às rádios, campeonatos, batalhas e concursos de rap. Participou de diversos concursos ao longo de cinco anos, vencendo dois deles em âmbitos estadual e nacional. Ficou em terceiro lugar no concurso “Chance”, do jornal Diário Gaúcho (Grupo RBS/Globo), na edição Black Music, e conquistou o topo do pódio em “Melhor Torcida”. Em 2006, aos 17 anos, Rafa Rafuagi venceu o prêmio Hutúz, da CUFA, se destacando entre 2.200 grupos do rap nacional. Desde então, sempre atuou na construção de um movimento nacional voltado para a valorização da cultura hip hop com propósito social e educativo. Em 2021, lançou o livro Teoria Prática: A História das Juventudes na Engenharia Social, obra na qual busca estimular ações de educação e arte nas periferias. O reconhecimento no mundo literário veio quando foi patrono da Feira do Livro de Gravataí, município da Região Metropolitana de Porto Alegre.
A partir do que viu em sua trajetória, o Museu do Hip Hop RS parte de uma provocação que Rafuagi traz do Universal Hip Hop Museum, de Nova York, que será inaugurado em 2026. “O que eu vi em Nova York se juntou a um outro fato, que foi o assassinato do DJ Only Jay. Ele morreu em 2018, se não me engano. Only Jay era DJ do Nitro Di, integrante do grupo Da Guedes, do Rio Grande do Sul. O assassinato do Only Jay foi de forma muito brutal e estúpida. Foi o estopim para que a gente se desse conta da necessidade de um espaço para imortalizar o patrimônio do hip hop.”
Até o Museu do Hip Hop RS ter um espaço físico, a caminhada foi difícil. Rafa Rafuagi relembra que foram muitos os entraves burocráticos. “Estávamos no meio do desgoverno Bolsonaro e não se tinha nenhuma interlocução com a União. Então, por 22 vezes, eu tive que acessar o Estado e o Município. O Estado até ofereceu alguns espaços, mas todos com uma série de entraves burocráticos que impossibilitaram a nossa instauração. Mas, através do vereador Giovani Bill, que também é do movimento hip hop, conseguimos o espaço atual, cedido pela Prefeitura.”
Projetos Estruturais e a união do movimento
O Museu do Hip Hop RS se tornou uma referência justamente por conta da construção coletiva do processo de constituição do espaço. “O primeiro passo foi entender que não teria como fazer um museu sem que a gente legitimasse a parada e, ao mesmo tempo, respeitasse as diferenças. Fizemos pesquisas históricas em nove fóruns. Pegamos o mapa do Rio Grande do Sul e o dividimos em nove regiões, onde elegemos cidades satélites. Nessas cidades, havia responsáveis que convidavam os moradores da região a participar do processo de construção do museu. Entrevistamos mais de mil pessoas do hip hop que nos disseram como o museu deveria ser”.



Foi a partir dessa pesquisa que o grupo deu início ao segundo momento do processo, chamado “Na Estrada”. “Viajamos 1.500 km por todo o estado do Rio Grande do Sul, percorrendo essas nove regiões. Chegávamos com um gazebo, som, mesa e um museólogo, e catalogávamos in loco as doações que recebíamos. As pessoas faziam filas quilométricas para doar para o nosso museu.” Nesse momento, também era feita uma entrevista rápida com os doadores para registrar as histórias.
A terceira etapa foi a iniciativa “Museu + Cores”, que organizou as obras de revitalização do local. “Esse projeto deveria ganhar inúmeros painéis de grafite. E foi o que aconteceu. Construímos um projeto e contratamos os primeiros 40 profissionais do projeto: grafiteiros, grafiteiras, BBoys, BGirls, DJs, MCs — em sua maioria artistas do grafite — que coloriram o museu com uma série de murais homenageando personagens históricos, inclusive uma empena de quase 400 m², uma das maiores do Rio Grande do Sul, feita com andaime de fachada.”
O museu, inaugurado em dezembro de 2023, conta com estúdio de gravação, biblioteca, salas multiuso para oficinas, horta, espaço para shows, anfiteatro e até uma sala poliesportiva, além de muitos outros ambientes. Tudo isso em quatro edificações que garantem que “as histórias possam ser contadas com precisão pelas pessoas que as criaram”. Só em 2024, o Museu do Hip Hop já recebeu cerca de 30 mil visitantes. Com um acervo de mais de 3 mil peças — físicas e digitais — o museu é um espaço sagrado de alta importância no cenário latino-americano, funcionando como um centro de grandes encontros, onde diferentes comunidades compartilham saberes de música, arte, conceitos e ideias. O projeto ainda prevê a inclusão de 4.000 jovens, de 14 a 24 anos, em atividades de capacitação gratuita oferecidas pelo museu.




Contribuições para o acervo do Museu do Hip Hop
Prestes a apresentar uma exposição na Colômbia, o Museu do Hip Hop RS abriu uma campanha para reunir doações para seu acervo. Através de um acordo de cooperação com o Museu Nacional da Colômbia, Rafa Rafuagi detalha a importância de levar a mensagem do museu para lá, ressaltando a participação coletiva na sua fundação: “Ao meu ver, não seria justo da nossa parte não convidar todos os estados brasileiros a se fazerem presentes — inclusive para incentivar processos de salvaguarda da memória, da história, do patrimônio e das conexões.”
Para contribuir com o Museu do Hip Hop RS, basta enviar um e-mail para [email protected] ou [email protected]. Lá, é possível obter informações sobre o envio de acervos digitais e detalhes para envio físico.
O Museu do Hip Hop é um espaço independente, nascido e mantido a partir da força do próprio movimento. Com raízes firmes no território gaúcho, nomes como Rafa Rafuagi, Negra Jaque, Grupo Da Guedes, Cristal, Mano Rick e Co-Rap representam essa cultura pelo mundo, levando a mensagem de transformação, identidade e resistência a patamares cada vez maiores — sempre com os olhos voltados para as origens. “Nós não somos um museu estadual, nem gerido ou fomentado pelo Estado. Não é um museu nacional, nem privado na ordem de empresas. Nós somos um museu independente da sociedade civil, do movimento hip hop, e que levantamos com muito esforço.”

Para conhecer mais do Museu do Hip Hop RS, basta acessar o site Museu da Cultura | HipHop RS. Lá, é possível encontrar a programação do museu, exposições e informações sobre o espaço. O museu também está na rede social Instagram (@museudohiphoprs). E para quem estiver fazendo um passeio por Porto Alegre, é a oportunidade perfeita para visitar o espaço que fica no endereço Rua Parque dos Nativos, 545 – Vila Ipiranga