De acordo com o Sistema Alerta Rio, janeiro de 2024 foi o mês mais chuvoso no Rio de Janeiro desde 1997. Os dias 13, 14 e 15 se tornaram inesquecíveis para muitas famílias, sobretudo aquelas que sofreram com alagamentos, deslizamentos e perdas materiais e afetivas.
“As compras que eu tinha feito eu coloquei no alto, mas a água levou tudo. Tudo! Só ficou mesmo os documentos, que foi que deu pra gente levar. De resto, não sobrou nada. As coisas que tínhamos em casa foi tudo perdido”, esse é o relato de Rita de Cássia sobre a enchente ocorrida no último verão em Acari.
Aos 45 anos de idade, essa não foi a primeira vez que ela viu sua favela debaixo d’água. Desde criança ela sofre com alagamentos no bairro onde nasceu. Tanto é que hoje, depois de diversas perdas, Rita confessa que procura não ter muitos móveis em casa porque sabe que pode ser afetada por enchentes mais uma vez.
Quem mora no Rio sabe que a realidade de Rita não é um caso isolado. Ser morador de áreas faveladas e periféricas é sinônimo de estar vulnerável a eventos climáticos extremos que acontecem em todo verão. Apesar da repetição, não há ações efetivas por parte das autoridades governamentais que garantam a segurança e a proteção de populações negras e pobres.
Da falta de um saneamento básico a moradias inadequadas, o racismo ambiental se faz presente no cotidiano de pessoas pretas e pardas de forma cruel. Manter este grupo nas zonas menos cuidadas da cidade é dar continuidade às violações históricas. Com a ausência do poder público, cabe ao povo enfiar o pé na lama para salvar e tentar proteger os seus. Normalizar a enchentes e deslizamentos nas favelas do Rio de Janeiro é assinar contrato de desumanização que o Governo do estado tem mantido nos últimos anos.
“Por que temos que sofrer esse racismo ambiental se foi tudo construído pelos negros? Da culpabilidade nasce esse racismo. É mais fácil culpabilizar quem não tem moradia, quem não tem estrutura do que culpar o próprio Estado. Que deixa acontecer e que pode fazer. Porque política pública é saneamento básico. O que falta dentro da comunidade é racismo mesmo”, comenta Lúcia Cabral, fundadora do Educap, espaço de união e aprendizagem comunitária que atende pessoas afetadas pela emergência climática no Complexo do Alemão.
Promessa X Realidade
As promessas que são feitas quando a tragédia acontece não saem do papel. Em janeiro de 2024, enquanto as enxurradas faziam vítimas em diferentes partes do estado, o governador Cláudio Castro viajava de férias na Disney. Em 24 horas, cerca de 12 pessoas morreram por afogamentos, descargas elétricas e soterramentos. Foi preciso denunciar a negligência para que a responsabilidade do cargo e urgência da situação interrompessem as férias do governador.
Da omissão de Cláudio Castro em meio a calamidade pública, nasce a campanha RJ Não é Disney, idealizada pela Coalizão Clima de Mudança e Meu Rio. O objetivo era pressionar o governo a implementar um Plano de Mitigação e de Adaptação de Mudanças Climática que tenha a colaboração de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Além disso, a iniciativa fortaleceu lideranças que estavam na linha de frente por seus territórios. Com atos de rua, formações e conteúdos nas redes sociais, a Coalizão segue destacando a importância de priorizar a pauta climática e adotar medidas de enfrentamento e prevenção.
“Na hora da emergência, quem ajuda é quem tá perto. Então quanto mais as pessoas estiverem bem informadas sobre qual é o protocolo de emergência, o que pode e o que não pode ser feito, quem pode e quem não pode ser cobrado, mais rápido a gente pode se organizar pra poder ajudar quem deve ser ajudado e denunciar a negligência como um todo”, explica Marcele Oliveira, integrante da Coalizão Clima de Mudança.
Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros mais afetados foram Anchieta, Pavuna, Jacarezinho, Acari e Irajá. Além disso, cidades da Baixada Fluminense, região com maior número de mortes, sofreram com o transbordamento dos rios Botas, Capivari e dos Macacos. A principal motivação para que um rio transborde é a falta de limpeza e drenagem.
Maya Antunes tem 24 anos, trabalha como doula e é cria da Pavuna. O território faz divisa com a Baixada Fluminense e a favela de Acari e foi fortemente afetado pelas chuvas de janeiro de 2024. Na época, Maya estava reformando sua casa e teve a cozinha completamente alagada. Com a chegada do verão, ela já tem pensado em formas de se organizar para ajudar as pessoas ao seu redor.
“Na época, estava tentando fazer dinheiro para pôr telha. Fiquei com a geladeira sem funcionar durante um tempo, e com uma filha de 4 anos. Tive conhecidos, amigos e familiares que perderam muitas coisas por conta das enchentes que sempre acontecem no Rio Acari. Ele transborda. Da última vez foi tão forte que chegou ao segundo andar dos apartamentos. Tem muita morte não contada, crianças com doenças depois. Nossa, é um cenário muito triste”, relembra Maya.
Na cidade do Rio, 45% das pessoas internadas por doenças de veiculação hídricas são negras, de acordo com o Mapa da Desigualdade. O acúmulo de terra nos rios e falta de uma coleta de lixo adequada é uma realidade em toda região metropolitana. Na época, Cláudio Castro afirmou que mais de mil rios foram limpos para evitar enchentes e que os investimentos em macrodrenagem continuariam ao longo de 2024.
Perguntada sobre as drenagens dos Rios Acari e Pavuna, a Secretaria do Meio Ambiente informou que o Programa Guardiões dos Rios retirou 60 sacos de 200L de resíduos por quinzena e que mais de 50% desses resíduos vão para reciclagem local. Moradores dos bairros afirmam que não viram nenhuma movimentação para limpezas dos rios no último ano e acreditam que as enchentes irão se repetir.
Em meio a promessas e ações ineficientes, quem produz soluções para as consequências da crise climáticas nas favelas são os próprios favelados. Tatiane Oliveira, também conhecida como Baiana, foi uma peça fundamental durante as chuvas na favela do Acari. Cozinheira e moradora da Parmalat, ela ficou com água na cintura dentro de casa e perdeu bens essenciais como camas e guarda-roupas. No entanto, no estabelecimento em que vende quentinhas, os alimentos não foram prejudicados. Então, ela decidiu preparar comida para doar para os vizinhos.
“Ficamos mais de dez dias doando comida. Eu vinha 8h e saía às 17h. Primeiro começamos a doar aqui na Parmalat. Conforme o pessoal foi ajudando, conseguimos doar para Beira-Rio e Fim do Mundo. As pessoas me perguntavam: ’Você não perdeu suas coisas?’. Eu perdi, mas teve gente que perdeu mais que eu. No mesmo dia eu consegui entrar aqui, limpar tudo e fazer comida para eles. Teve gente que uma semana depois não conseguia entrar dentro de casa”, conta Baiana.
Por conta da dedicação no preparo das comidas, Baiana não teve tempo de se inscrever para ser beneficiária do Cartão Recomeçar, um auxílio de R$3.000 oferecido pelo Governo do Estado para compra de eletrodomésticos, materiais de construção e móveis. Esta mais uma promessa do Cláudio Castro que não foi cumprida efetivamente. Nem todas as pessoas que buscaram o benefício foram contempladas. Rita de Cássia, citada no início da reportagem, é um exemplo disso: para conseguir se salvar, ela precisou ir para a laje de casa e passar para o terraço da vizinha. Nenhum móvel ou eletrodoméstico foi recuperado. Ao longo de 2024, ela recebeu doações que lhe ajudaram a prosseguir. No entanto, quase 1 ano depois, Rita não recebeu o Cartão Recomeçar.
O medo da chuva
Além da parte financeira e material, a saúde mental e emocional também é afetada. Rita tem medo das mudanças do tempo. “O tempo muda e a gente já fica apreensivo porque o Rio Acari enche muito rápido. Fico com o coração na mão, esperando que já vai encher. Porque é só chover que alaga. O que eu tenho já vou colocando para o alto”, conta Rita.
Esta apreensão por medo das consequências das chuvas é chamada de ansiedade climática. As enchentes e alagamentos intensificam o trauma fazendo com que chuviscos sejam sinônimos de tensão. No verão, época marcada por fortes chuvas, essa ansiedade fica mais à flor da pele. Sem ações efetivas por parte do governo, famílias seguem vulneráveis a um ciclo vicioso: perder móveis no início do ano; trabalhar nos próximos meses para recuperar e sofrer novamente com as enchentes.
Luize Sampaio, coordenadora de informação da Casa Fluminense, afirma que este tipo de ansiedade é uma sensação causada pela omissão do Estado diante dos desastres ambientais.
“Quando você é de periferia, principalmente se for negro, essa preocupação é herdada. Para quem é de favela, a enchente é uma dura certeza. O medo dos nossos – que não é da chuva e sim do que fizemos a chuva se tornar – esconde muitos conceitos climáticos importantes entre eles: a ansiedade climática, que paralisa e atormenta emocionalmente vítimas de desastres ambientais; a pobreza energética, que torna comum a perda de eletrodomésticos a cada chuva; e o mais violento, o racismo ambiental, uma sobreposição de impactos que atingem uma população já violentada”, explica Luize.
Águas de dezembro e o ínicio do verão
Não é possível prever o futuro, mas o presente já anuncia que este verão não será fácil. No mês de dezembro, uma casa desabou por conta das chuvas em Acari. Onze pessoas ficaram feridas, entre elas crianças. A dona da casa afetada é irmã de Jariane Santos, de 31 anos. Não é a primeira vez que a família é atingida pelo racismo ambiental. Nas chuvas de janeiro de 2024, Jariane precisou de uma banheira para transportar seu filho de quatro meses na enchente. O cansaço e a revolta se tornam um pedido de socorro em meio a negligência do governo.
“Não temos apoio de ninguém. O pessoal do governo só vem olhar, tiram uma foto e vão embora. Eles não resolvem nada. Parece que estão esperando acontecer algo pior. Eu ganhei o Cartão Recomeçar, mas com $3.000 você consegue fazer o que? Pra quem perdeu tudo, esse dinheiro não é nada. A gente precisa de voz!”, desabafa Jariane.
Do outro lado do Rio, na Rocinha, a situação não se diferencia. Também em dezembro, uma pessoa morreu soterrada na Rocinha por conta das chuvas. Por ser formada por morros e becos estreitos, a força da chuva na maior favela do Rio de Janeiro forma enxurradas que carregam e levam o que estiver pelo caminho. Magda Gomes, cria da Rocinha e liderança comunitária, tem lembranças tenebrosas de chuvas que atingiram o território nos últimos anos. Mesmo que as mortes não sejam sempre notícias, tragédias como essa não são difíceis de acontecer.
“Eu moro no Trampolim e quando chove eu tenho que tomar uma decisão. Se eu estiver na rua eu não subo. E se eu estiver em casa, eu não saio porque corre o risco de eu ser levada pela quantidade de água que. Uma coisa que é possível fazer é ampliar e divulgar os pontos de apoio. Há locais em que quem mora na parte baixa chega fácil. Mas e quem mora na parte alta? A gente não pode mais falar desse território somente pela tragédia”, comenta Magda.