Mesmo com ADPF das Favelas, operações continuaram e quem vive em comunidade não está seguro

Neste primeiro semestre do ano, 811 pessoas morreram em intervenções causadas por agentes de segurança pública
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Reportagem: Ariel Freitas, Matheus Andrade e Melissa Cannabrava

Nos últimos anos, a temática de segurança pública tem sido presença diária na vida dos moradores nas comunidades cariocas. Através de operações policiais frequentes nessas regiões e de supostos confrontos entre agentes de segurança e criminosos, as pessoas que vivem nas favelas enfrentam um certo receio quando o assunto é relacionado à integridade social. E, além de conviver no meio dessa situação de apreensão e de risco, a população encara um discurso desconectado da realidade de quem deveria garantir o seu bem-estar: o poder público. 

Cada vez mais, os representantes das políticas públicas do Rio de Janeiro direcionam o discurso para um viés mais radical e ofensivo nas operações e ações dos agentes de segurança pública nas favelas. Tal posicionamento incentiva o uso excessivo de repressão e força policial que resulta no aumento da tensão e na taxa de letalidade nas intervenções realizadas pelo Estado. 

Recentemente e em sua rede social do Twitter, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), compartilhou a necessidade de mudar uma das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que diminuiu, mesmo que de forma curta, o índice de mortes nas operações dentro das comunidades cariocas. Através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, mais conhecida como ADPF das Favelas, que restringe as ações policiais durante a pandemia, foram reduzidas em 34% as mortes no ano de 2020, segundo os dados da pesquisa “Operações Policiais e Violência letal no Rio de Janeiro: os impactos da ADPF 635 na defesa da vida”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF). 

Foto: Reprodução

Mesmo com a vigência da ADPF das Favelas, as ações e operações nas favelas continuaram. Neste primeiro semestre do ano, de janeiro a julho, 811 pessoas morreram em intervenções dos agentes de segurança pública, o que revela que 38% dos homicídios no RJ nos últimos 7 meses foram causados por policiais. Além desses números, em maio deste ano, a polícia do Rio produziu a sua maior chacina da história na favela do Jacarezinho, onde 28 pessoas foram assassinadas. 

Dentro dessas estatísticas, há rostos e histórias, como a de Kathlen Romeu, de 24 anos, morta na comunidade de Lins de Vasconcelos, em 6 de junho. A jovem, que trabalhava como design de interiores e estava grávida de 14 semanas, visitava a família quando foi alvejada por um disparo de arma de fogo na região do tórax, em uma ação policial. Após mais de 100 dias da morte, ainda não há previsão do resultado das investigações do caso. 

Dez dias depois de Kathlen Romeu, a letalidade das ações policiais vitimou outro morador nas comunidades cariocas, mesmo com as restrições da ADPF das Favelas, que o prefeito Eduardo Paes pede alteração. Desta vez, Thiago Santos, de 16 anos, foi alvejado por um disparo de arma de fogo dentro de casa, no Morro da Fé. O adolescente, que sonhava seguir a carreira militar, foi atingido enquanto abria a porta do quarto para encontrar a família na sala. 

Durante operação policial no Alemão em junho, Thiago Santos Conceição (16) foi baleado e morreu dentro de casa. O estudante foi o 20º adolescente baleado em 2021, sendo o 7º tendo o futuro interrompido.
Foto: Renato Moura/ Voz das Comunidades

Tal caso evidencia uma das preocupações constantes de quem mora nas comunidades cariocas: a insegurança dentro do lar. Por residirem em um território exposto às vulnerabilidades sociais, moradores estão à mercê das eventualidades que acontecem, inclusive, das operações policiais e confrontos. É com essa apreensão que a família de Vanessa Cabral, de 28 anos, na condição de PCD (Pessoa Com Deficiência), recebe o retorno da situação da filha que foi atingida por um disparo de arma de fogo. Vanessa foi baleada enquanto dormia, na Grota, Complexo do Alemão, no último dia 05 de outubro.

Em reportagem para o Voz das Comunidades, Dona Sônia comentou que, por ser PCD, a sua filha não percebeu a gravidade da situação. Naquele momento apavorante, que é mais um dos episódios que o ADPF das Favelas tenta evitar, Sônia revelou que foram com a filha até a UPA do Alemão brincando. Enquanto caminhava, contavam “1, 2, 3…” ao trocar os passos. 

 Mãe de Vanessa, Sônia conta que a filha não percebeu que tinha sido baleada.
Foto: Selma Souza/Voz das Comunidades

Vanessa teve que passar por pelo menos três cirurgias. Ela recebeu alta do Hospital Estadual Getúlio Vargas no dia 09 de outubro, quatros dias após ser baleada. Atualmente, Vanessa Cabral está em casa e bem, felizmente não teve sequelas causadas pelo ocorrido. Mas seguirá realizando algumas consultas de acompanhamento. 

À margem da sociedade

A invisibilidade social é um indicador forte da ausência de políticas públicas nas favelas cariocas. Em 2020, o Programa Territórios Sociais identificou que 25 mil famílias convivem com um grau alto de vulnerabilidade nas comunidades do Rio de Janeiro. Deste índice, mais de 21 mil enfrentam a pobreza extrema nesses espaços.

E, com a chegada da pandemia e suas consequências, a tendência é a piora desse quadro no cotidiano favelado. Como aponta a pesquisa “Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras”, do coletivo Movimentos, que destacou que cerca de 54% dos moradores nas favelas do Rio de Janeiro que tinham um emprego formal perderam o trabalho pelos danos causados pela Covid-19. 

Além dos impactos financeiros, o estudo, que avaliou as comunidades do Complexo do Alemão, da Maré e da Cidade de Deus, também observou a presença da violência nesses territórios durante a pandemia. Cerca de 83% dos moradores ouviram tiros de dentro das suas casas, o que desencadeou um estado apreensivo e ansioso de 34%.

À margem da sociedade, como indica a entrevista da coordenadora da Comissão de Direitos Humanos, Mônica Cunha, estes casos de mortes em favelas estão relacionados com a mentalidade ultrapassada para políticas públicas voltadas à segurança que criminalizam moradores de comunidades. 

Mônica Cunha é coordenadora da Comissão de Direitos Humanos.
Foto: Reprodução

“Isso nada mais é que uma abolição não concluída. Que a gente continue na luta para fazer com que eles (autoridades públicas) nos enxerguem como seres humanos, que nos enxerguem como pertencentes daquele lugar. Para o sistema quando alguém sobrevive a isso é terrível. Porque esta pessoa pode cobrar justiça, pode denunciar”, explica.

Dados e pesquisas demonstram que as comunidades do Rio de Janeiro precisam de um fortalecimento de políticas públicas afirmativas para combater a violência, a vulnerabilidade social, a acessibilidade cultural e outros indicadores que possibilitam um bem-estar e uma vida digna para todos – e não de alteração na ADPF das Favelas em um ano marcado por chacinas e operações policiais falhas -. 

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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