Quem observa a performance de Azula enquanto canta, impressiona-se com o sentimento e expressividade que a artista carrega e emite para quem a assiste. O misto do movimento corporal com a voz impactante marca e embala a todos, em um ritmo musical firme, forte e belo.
Àqueles que ainda não conseguiram ver uma apresentação da artista de forma presencial, os vídeos dela, disponíveis nas redes sociais, mostram como vem a cantora. Do sorriso cativante que celebra as divindades religiosas até a seriedade das mensagens de protesto, durante a apresentação ela salta sentimentalmente entre os pólos da música, prendendo a atenção e a respiração do público, que almeja, sempre, pelo momento seguinte da artista.
Fora das luzes do palco, Azula esbanja toda a simpatia por onde passa. No dia da entrevista, ela nos recebe em sua casa, em um apartamento na Gamboa, região central do Rio de Janeiro. A artista nos encontra na porta de casa, já aberta, e nos leva para uma sacada que dá visão para uma parte do Morro da Providência. Sob a mesa, garrafas e copos d’água, além de um cinzeiro. O cenário remete àqueles documentários antigos, onde uma grande personalidade do cenário musical carioca contava sobre sua vida profissional. Acompanhada de sua assessora, Sol Solemni, e mais um amigo, Azula busca as palavras com os olhos em um ponto fixo da sacada e as palavras surgem de forma natural.
História e memória
“Como surge Azula para o mundo?” é a primeira pergunta da entrevista. Ela sorri e busca nas lembranças suas raízes e trajetória até o momento. “Eu sou de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. E lá vivi a minha infância, relação familiar e amigos. Pessoas queridas que conviveram comigo por bastante tempo. Minha mãe é de Caxias, mas morou em Bangu por mais de quarenta anos. Então fui criada lá.” Ela conta que a Vila Aliança, onde nasceu, é uma terra de muitos donos e que isso leva a pensar que pessoas que moram no local, principalmente crianças, já “não é mais aquele corpo que tem vários filtros e não tem maldade, mas acaba tendo, porque as coisas estão bem na nossa cara”, destaca ela.
Azula, depois que passou a morar na Baixada Fluminense, diz que lá “também tem suas leis, seus grupos e controles.” Em seguida, complementa que “Dos espaços lá, eu tive um acesso maior dentro da igreja evangélica, por conta de um primo que morreu em um acidente de moto. Isso deixou a minha família muito abalada e optaram por entrar para igreja”. Foi ali, então, que começou a despertar para o processo artístico. Cantando e trabalhando com mulheres mais velhas e mais novas do que ela, atuava na produção de eventos do meio religioso. Inserida no cenário da igreja evangélica, ela relata que, com o passar do tempo, foi se afastando. “Foi um processo longo e tortuoso. Cresci, aprendi a cantar, mas tinha meu corpo cerceado. Meu sexo era cerceado. E me incomodava, também, a forma como as mulheres eram tratadas. A estrutura da minha família é toda do matriarcado. Minha mãe é a manda chuva da parada. Então não tinha motivo para ela estar naquele lugar de submissão quando. Na verdade, ela resolvia e fazia todos os atos”, conta.
Com o afastamento da igreja, a artista passou a se dedicar aos estudos e carreira. Hoje se dividi entre a vida de universitária no curso de História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a de cantora. No seu primeiro EP, ela aborda questões relacionadas aos traumas de pessoas pretas e LGBTQIA+, além de também trazer uma mensagem de superação. Questionada sobre como é, para ela, trazer isso na música, Azula responde partindo de diferentes perspectivas diante dos espaços por onde passou. “Cantando na igreja, você interpreta as coisas de outras pessoas. Cantando profissionalmente, também é interpretar coisas de outras pessoas. Mas eu precisava cantar alguma coisa que tinha mais a ver comigo.” Azula relata que as suas vivências e influências que a vida lhe trouxe é um marco de inserção nos debates e círculos dos quais participa.
“Eu passei a perceber o quanto era importante o poder da palavra e de como isso era válido dentro do ativismo negro LGBTQIA+. Eu acho que a música, a arte e a minha palavra precisam estar muito direcionadas. Sinto necessidade. Pra mim é vital. E eu chego nessa questão de morte, traumas, que são situações bem complicadas pra nós porque acho que o apagamento é uma coisa muito grave.”
Azula conta que foi ao enterro de uma amiga trans que estudava pedagogia na UERJ e isso a impactou muito. “Mulher negra, universitária, de Queimados, que tinha a mesma idade que eu, passou por momentos muito parecidos… E ela morreu por negligência médica. São pontos do âmbito do racismo que a gente conhece. Eu vi as pessoas a chamando pelo nome masculino. A família tentou vestí-la dessa forma… Então eu fico pensando onde está o nosso direito, né?” Em relação à mensagem de superação dentro da música, a artista responder que “enquanto pessoas pretas e pessoas trans, a gente tem os nossos traumas cotidianos e coletivos. São traumas que vão se acarretando ao longo dos séculos, mas algumas vamos superando e conseguindo elaborar melhor.” Ela explica que enxerga a superação diante de tantas injustiças que entram em seu cotidiano. “São contra sentimentos traumáticos que a gente precisa sair, ou pelo menos consegue achar armas pra brigar. Porque em grande parte é isso que nos paralisa”, relata.
No YouTube, a apresentação da artista no Festival de Wakanda, em Madureira, impressiona pela presença de palco e interpretação musical. Sobre isso, Azula responde que aprendeu com as pessoas que a música está dentro do seu corpo e que isso precisa ser expresso. “Como você respira, como você emite, como você transmite… Isso já mexe demais comigo. Além do conteúdo das músicas, elas me levam para esse lugar. A gente está analisando, vivendo e sentindo tudo que está ali. E quando eu coloco isso para fora, de alguma forma eu quero administrar. Eu sinto que as pessoas estão jogando energia pra mim e, quando eu jogo para elas, vira aquela situação catártica (de purificação dos sentimentos), né? Então envio e elas respondem e aí eu jogo mais e elas respondem. E aí a gente fica ali vivendo essa loucura até o final. E isso é muito gratificante.”
Azula no Espaço Favela
Sobre o Rock in Rio, a cantora expressa um misto de animação com uma inspiração forte que parece se confundir entre expectativa e nervosismo. Ela conta que estava em Caxias, morando com a mãe, reorganizando os trabalhos para os lançamentos do ano quando uma das pessoas da produção do evento entrou em contato pelo Instagram. “A pessoa falou de um festival, mas não disse do que era. Então dei aquela pesquisada no perfil da pessoa e vi que fazia muitos festivais. Então, só poderia ser o Rock in Rio. Fiquei na expectativa, até que o Zé Ricardo me liga. Aí tudo vira um auê!”, ri ela contando que a produção gostou muito do trabalho dela e de como a questão de ter uma artista negra trans dentro do debate era gigante para o evento.
“Minha mãe é uma mulher evangélica, não necessariamente ela entende tudo que eu faço. Ela admira, respeita, compreende a minha arte, a minha vida. Mas ela também está nos movimentos dela, da vida cotidiana, de uma mulher que vive na baixada e tal. Então, eu explodi em casa e tentando me entender, sabe?” A ficha caiu para a mãe de Azula quando ela apareceu no programa RJTV. “Eu tinha que guardar segredo até o dia da coletiva”.
Sobre como tá sendo toda a exposição, ela faz uma reflexão em volta do quanto é difícil para artistas negras se destacarem nesse cenário e que as reinvenções são necessárias para ser vista. “Nós, artistas negros, produtores negros… A gente sabe como é mais difícil pra gente. Por milhares de motivos e embates aí que já estão colocados institucionalmente nesse país. Então tivemos que correr bastante. Tivemos que nos reinventar bastante… Mas estamos confiantes, com o caminho percorrido até aqui e o que a gente conseguiu construir foi ótimo.” Tendo como inspirações Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Elza Soares e outras grandes artistas negras que se destacaram ao enfrentar uma cultura social antiga e sólida, Azula revela que a mensagem que trará em sua apresentação no Rock in Rio é da Memória, fazendo uma breve reflexão sobre como o movimento de transsexuais é visto no Brasil. Abordar o sentimento, a beleza, o sorriso, mas sem deixar de olhar para questões sérias como luta, cultura e identidade. “É a memória não só de que existimos, né? Não é só a memória da luta, mas também memória sobre beleza.”
Texto: Rafael Costa
Fotos: Selma Souza
Produção: Gustavo Eduardo
Revisão: Jonas Di Andrade