Já tem um tempo que venho observando algo ao meu redor e que já tem ultimamente tem me incomodado ainda mais. Eu gosto de chamar de “efeito Havaianas”, e não tem nada a ver com o efeito Havaianas do comercial (sabe aquela propaganda com a Debora Secco na praia, em que ela calça as Havaianas e aparecem vários homens sarados? Então, não é disso que estou falando).
Recentemente, tem a ver com outro calçado, aliás. O burburinho da vez na internet e no Twitter foi sobre a postagem da YouTuber e influencer Ellora Haonne, que postou orgulhosa seu tênis rasgado no Instagram. O contexto da postagem seria de uma conscientização sobre o consumismo e o excesso de bens materiais, em contraste com o consumo consciente e minimalismo… enfim, conceitos e estilos de vida que estão “na moda” em alguns grupos e meios sociais.
Se, por um lado, o tênis rasgado da influencer propõe uma reflexão sobre nossas necessidades materiais antes de sair comprando qualquer coisa apenas por aparência ou ostentação, por outro lado, uma parte considerável da população ainda carrega estigmas justamente pela questão das aparências, como pontuaram e relataram diversas pessoas nas redes sociais.
Não é errado ou imoral usar um tênis rasgado, ou sujinho, ou velho. Eu mesma só compro um tênis ou sapato novo quando o velho está com a sola descolando. Mas eu lembro muito bem de quando eu era mais nova e ia sair pra algum lugar, minha mãe sempre dizia: “porquê você não coloca um brinco, um relógio, um batom… eu compro as coisas pra você ter em casa e sai parecendo que não tem nenhum”.
O fato é que, querendo ou não, ainda vivemos numa sociedade muito baseada em aparências e posse. De modo que, para uma parte da população sair com um tênis rasgado, sem relógio, com uma camisa velha, ou até repetir roupa, reflete diretamente a condição econômica dessa pessoa. É dizer que se ela não tem ou não exibe produto X ou Y, é porque ela não pode consumir tais produtos — ou quantidades desses produtos — e não que ela simplesmente escolheu não consumir. Significa que seu trabalho, seu salário (e por conseguinte, sua escolaridade, bairro, classe, etc) é baixo, inferior, insuficiente, limitado e materialmente limitante.
Nos anos 80 e 90, Havaianas era a sandália do pobre, do trabalhador, do favelado. De quem só conseguia pagar, no máximo, por um par de chinelos de borracha branco com uma tira colorida — e que geralmente só ia precisar comprar um par por um longo tempo, quem sabe outro dali a 5 anos.
Nos anos 80 e 90, Havaianas era coisa de pobre,de favela do, do trabalhador. Era sempre branca com a correia em algumas cores, preta, azul e… será que tinha outra? Hoje em dia é multicolorida, vários designs atraentes e modernos, estampas de personagens famosos para as crianças e também para os adultos, todo mundo usa. Na praia, na rua no shopping… Ah sim, tem loja em tudo quanto é shopping, os gringos levam de souvenir para seus países…
Claro que, nesse caso específico, o esforço para mudar essa associação (e, porque não, aparência) partiu da própria marca, começando por espalhar o “todo mundo usa” — como quem diz “ter um produto barato e duradouro é vantajoso pra todo mundo” — e com a diversificação de seus produtos, novos modelos, cores e estampas.
Para fugir do estereótipo de “coisa de pobre”, a empresa Havaianas mudou seu marketing e seu público alvo. Já os pobres, por sua vez, não tem outra alternativa pra fugir do estereótipo a não ser buscar outra aparência, consumindo produtos — e quantidades de produtos — que são associados a status mais elevados (mesmo que sejam produtos piratas ou parcelados em inúmeras suaves prestações).
O caso do tênis rasgado é só mais um exemplo do “efeito Havaianas”, que expõe a seguinte contradição: um morador da periferia com um tênis rasgado é ridicularizado, marginalizado, excluído, enquanto que uma pessoa da classe média com o tênis rasgado é desconstruído, influencer, minimalista, consciente, anticapitalista(!).
Mais do que isso, o “efeito Havaianas” trata de um mecanismo da sociedade de consumo, neoliberal e meritocrática: cria todo um imaginário de ascensão e status social representados por riqueza e abundância de bens materiais, de modo a impulsionar as classes mais baixas a buscar um modelo de realização que só ocorre por meio do “ter” (do possuir e do exibir), enquanto “libera” a classe média (que já desfruta quase que naturalmente dos bens e padrões impostos às classes inferiores) para pensar em soluções para as crises planetárias urgentes, em especial do clima e do meio ambiente. Soluções estas que incluem — pasme! — diminuir o consumismo, o mesmo que é instigado nas classes inferiores. Pobre, o problema, como sempre, está em você.
Outro lugar onde eu vejo muito o “efeito Havaianas”, e talvez seja o lugar onde mais me incomoda, é nos debates sobre consumo consciente e sustentabilidade no dia a dia, que consistem em adotar medidas como abandonar o uso de plásticos descartáveis, substituir embalagens plásticas por outras opções, preferir produtos mais naturais em oposição aos industrializados e petroquímicos, etc.
No contexto dos produtos naturais, um dos maiores representantes do “efeito Havaianas” atuais são o óleo de coco e a tapioca. A versatilidade do óleo de coco, que ganhou protagonismo entre o público urbano, já era mais do que conhecida por gerações de mulheres do interior do Brasil, que usavam o óleo de coco (ou de outras sementes, como algodão e mamona) na cozinha e nos cabelos.
Mais recentemente, outros produtos tem se destacado como alternativas ecológicas e sustentáveis à grande oferta de industrializados: barbeadores com corpo de metal, fraldas de pano, sabão de coco, toalhinhas de tecido no lugar de guardanapo, marmitas… Em comum, são coisas que já foram ou ainda fazem parte da rotina doméstica de casas periféricas e de trabalhadores da base da pirâmide socioeconômica. O caso da marmita é curioso: de “coisa de peão” a modelos que custam mais de 200 reais! Hoje em dia, existem inúmeros produtos que foram alçados ao status de sustentáveis, naturais e eco-friendly (isto é, amigável para o meio ambiente, que causam menos impactos ambientais na sua produção e uso), mas que há algumas décadas eram indicativos de que uma pessoa não tinha condição de adquirir os outros produtos, aqueles que eram modernos e industrializados. Ou seja, “coisa de pobre”.
Ora, se justamente os pobres são os primeiros que utilizam esses recursos, porque não trazer a discussão de sustentabilidade, lixo zero, consumo consciente e minimalismo para dentro da periferia? A mesma periferia que sofre muito mais com o problema do acúmulo de lixo, poluição e falta de saneamento, pois é onde o lixo não é só uma questão de salvar as espécies animais que estão se intoxicando e comendo plástico nas florestas e oceanos distantes, é uma questão urgente, de direitos humanos básicos, de espaço físico e saúde pública. Que lugar melhor pra começar a falar de geração e manejo doméstico do lixo e sobre embalagens alternativas do que os lugares que vivem cheios de lixo por falta de recolhimento e destinação eficiente?
Mais ainda, porque continuar a julgar e desdenhar dos bens de uma pessoa, empurrando-a para um estilo de vida que só aprofunda as desigualdades enquanto aproxima cada vez mais o esgotamento dos recursos materiais? Porque continuar dizendo que sair da pobreza é uma mera questão de meritocracia e poder de consumo e não de dignidade, inclusão e direitos? Porque dizemos aos pobres que tênis rasgado é feio e dizemos pra classe média que tênis rasgado é consciência?
Por um lado, o que sustenta o sistema é a manutenção de um alto nível de consumo, fazendo com que as pessoas estejam sempre desejando alcançar o próximo nível de ostentação. Por outro lado, esse mesmo sistema culpabiliza e marginaliza aqueles que “falham” em se encaixar nos padrões estabelecidos, ao mesmo tempo em que sabota as condições que seriam necessárias para a evolução que o próprio sistema e seus padrões pregam.
Por isso, a marmita inox é feia, humilhante, mas a marmita de silicone de 200 reais é ok. A marmita de inox significa que o trabalhador não pode pagar por um almoço no restaurante da esquina, por outro, a marmita de silicone também pode significar que as pessoas preferem economizar e investir numa alimentação caseira e saudável.
A sustentabilidade sem inclusão não é, de fato, sustentável. De nada adianta oferecer produtos de baixo impacto ambiental que só alguns conseguem pagar, enquanto na periferia ainda existem 100 mil pessoas que continuarão comprando embalagens PET. Os prédios sustentáveis do futuro, com integração energética, placas solares e jardins verticais vão abrigar que tipo de pessoas? Será que o campo vai conseguir abrigar toda a população das cidades, nessa busca por uma vida mais natural e slow (devagar)? A procura por novos planetas parecidos com a Terra para abrigar os seres humanos pretende levar os pobres também, ou só quem puder pagar pela passagem nas naves espaciais? Qual o lugar dos pobres e das classes mais baixas na transição para a sustentabilidade?
Se as inovações e ações ditas sustentáveis não levarem opções pra dentro da periferia, se não buscarem quebrar a lógica meritocrática do cada um por si, então a sustentabilidade se tornará apenas mais uma mercadoria e mais um instrumento de desigualdade e segregação. A marginalização irá se expandir para uma marginalização ambiental e climática, com os efeitos mais danosos recaindo sobre os mais pobres, que vão respirar mais poluição, sofrer com mais enchentes e secas, comer mais agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados.