Pelo fim das “demonizações” políticas e pela ampliação do diálogo: um início de reflexão

Foto: Elson Júnior

Texto: William Correa

A fala do rapper Mano Brown no palco do PT no segundo turno das eleições para presidente da república, no final de 2018, representou um pouco do que vejo como um dos principais problemas políticos hoje: a perda da base do que é visto como “esquerda” no Brasil. E é nessa linha que vou construir este texto.

Bolsonaro foi eleito com 57.797.847 votos. Para grande parte das pessoas que se opõe a ele, seus eleitores são “idiotas”, “burros” ou coisas do tipo. E essa “imbecilização”, obviamente, não é só essa esquerda que faz. Adeptos do que é visto no Brasil como “direita” também fazem. Só que, como meu argumento vai no sentido de refletir acerca da autocrítica a ser feita por nós, esquerda, meu foco será nela.

Foto: Roque de Sá

A gente se acostumou a ofender eleitor do Bolsonaro e aliados como se isso fosse uma grande arma argumentativa. Mas é impossível que 57.797.847 pessoas sejam “burras”. Não são e estão longe disso. Esquecemos que, dentro de nossas falas acadêmicas, quem deveria ser efetivamente atingido não foi: a favela. E a falta de diálogo com a favela auxiliou o avanço do “conservadorismo de direita”, orientado por, em grande parte, pautas vistas como morais. Douglas Garcia, de 24 anos, co-fundador do Direita São Paulo e morador da favela Americanópolis, periferia de São Paulo disse para a Folha de São Paulo que é estranho que a ascensão da direita nas favelas não tenha ocorrido antes. E ele completa: “Você consegue convencer as pessoas atacando a questão moral. Fala para o cobrador de ônibus se ele apoia que filho João possa ser chamado de Maria. Vai dizer que não. Mas você não consegue se chega dizendo que vai tirar o Bolsa Família.”

Na mesma reportagem da Folha, dona Célia, de 63 anos e que foi convencida pelo filho a votar em Bolsonaro, diz que gosta de “um homem forte, com pulso”, reforçando a imagem construída por Bolsonaro de um político que iria “mudar as coisas”, por ter capacidade “moral” para isso. E todo o seu discurso de reduzir a violência segue a mesma linha mentirosa: acabar com a violência porque tem pulso, tem moral. O discurso moralizador não é de hoje, sem dúvida. Mas isso daria um outro texto e eu comento um pouco sobre isso no artigo sobre política de drogas.

Dona Célia completa que as pessoas acham que bolsonarista é tudo a mesma coisa, afirmando que discorda disso. E é exatamente nesse sentido que digo que deixamos de escutar e falar com as pessoas que deveriam ser nosso foco, já que os debates e conversas necessárias ficaram soterrados por nossos ataques a “bolsominions”.

A maioria dos moradores de favela que chega em casa tarde, cansada, com medo e sem dinheiro, vai realmente se preocupar em entender os termos difíceis utilizados pela militância de esquerda, majoritariamente branca e que faz parte de uma minoria universitária? Vamos pensar juntos e responder juntos: é óbvio que não. E é justamente a favela que mais sofre com tudo que há de ruim nesse país, desde a violência ao desemprego. Bolsonaro e aliados convenceram que a esquerda foi quem gerou todos os problemas do país e é exatamente “tudo isso aí” que ele prometeu mudar com seu “pulso firme”. Quem você acha que a massa iria apoiar?

E, de quebra, quando essa maioria da favela se convence a votar no Bolsonaro, como a dona Célia (que provavelmente representa milhares de donas de casa das periferias) percebe que a vêem como “bolsominion”, “acéfala” ou coisas parecidas que já vimos chamarem eleitor do Bolsonaro, você acha que ela vai pensar em mudar o voto?

Uma das principais coisas que aprendi no Mestrado (e na vida) foi que a gente não pode “demonizar” absolutamente nada. Porque quando a gente demoniza, “jogamos o bebê fora junto com a água da bacia”, como dizia meu ex-orientador e, assim, esvaziamos o debate, fortalecemos o binarismo, que é tudo que a política não é. E talvez quase nada seja. Sem ouvidos abertos para possíveis consensos, a gente deixa, por exemplo, de conversar com quem é contra cotas raciais no acesso ao ensino superior e que jura que isso é vitimismo das pessoas negras. Elas não são burras. Elas só desconhecem, não entendem (ou, ainda, não querem entender), provavelmente, os dados brasileiros sobre desigualdades raciais.

E, contrário do que alguns setores da direita dizem, esses estudos e muito menos os movimentos negros tentam convencer que negros são incapazes de passar no vestibular sem cotas (eu, por exemplo, passei sem cotas). E, mesmo que ainda haja divergências, para acertar as arestas é preciso diálogo. Muitos (inclusive parte de movimentos de direita) defendem cotas sociais por reconhecerem as desigualdades sociais, mas talvez não reconheçam que há desigualdades raciais, além das sociais. Só que ao invés de conversar sobre os dados (sem soberba intelectual, com exemplos fáceis), a gente fez o quê na maioria das vezes que se deparou com algum apoiador do Bolsonaro e que era contra cotas raciais? Levou para o lado pessoal, criou um “ranço político” da pessoa e perdeu a paciência. Afinal, muitas vezes dissemos que “não dá pra ter paciência com bolsominion”. Só que, provavelmente, o “bolsominion” também é o nosso vizinho que sofre com analfabetismo funcional.

Posição política, definitivamente, não é status. Ninguém é bom ou ruim por se enxergar como direita ou como esquerda. As pessoas são complexas demais, ainda mais que a própria política. Eu não estou dizendo que a gente precisa ter sempre saúde mental para discutir sobre tudo; somos humanos e ninguém muda nada estando mal mentalmente. Estou dizendo que a gente precisa descer dos pedestais da intelectualidade universitária elitizada para conversar com a moça que vende açaí ou com a tia que talvez você só veja na ceia de Natal. Essas duas pessoas só não querem passar mais 4 anos vendo roubalheira e não são idiotas por terem optado votar nos Bolsonaros e/ou no Witzel. E ainda há a influência religiosa, notadamente resultado do movimento crescente de igrejas neopentecostais nas favelas, que seguem na linha “moral” do discurso (e isso também seria tema para outro artigo).

Todo mundo age segundo interesses. E a direita ganha poder e dinheiro em cima da esquerda com base, especialmente, na ridicularização de muitas pessoas, movimentos, instituições e manifestações vistas como de esquerda. Onde? Só olhar no YouTube a quantidade de vlogs viralizados criticando quem defende cotas raciais e quem é contra o estatuto do desarmamento, além da moralização de outras pautas como aborto, drogas, expressão de gênero e orientação sexual, processo que se tornou típico do que é visto como de grande parte da “direita conservadora” brasileira. Quanto mais a gente cria raiva, “ranço político”, mais eles ganham views e mais eles ganham dinheiro. Ah, tenho que dizer que gritos de ordem como “fora Temer” (às vezes usados quase como cumprimento) e/ou “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar” não ajudam em nada, pelo contrário. Sobre o primeiro, o próprio Temer disse que vai sentir falta e o segundo não diz para ninguém de fora da militância que representa a defesa pela desmilitarização da polícia e muito menos explica brevemente o que isso significa. A direita adora utilizar tudo isso para crescer ainda mais.

Não defendo que devemos fazer o que essa direita faz, ganhando dinheiro aproveitando suas gafes ou a ridicularizando. Penso que devemos evitar esse caminho, a não ser no que se refere a pautas/ideias e menos sobre pessoas/instituições. Penso que, principalmente, a estratégia de atingir a grande massa deve mudar. Não sei exatamente como isso poderia ser feito de forma expressiva, mas sugiro, novamente, começar com quem está do nosso lado, encontrando alternativas para o discurso “moralizador”, controlando o “ranço político” que sentimos quando vemos alguém da direita falar (ou alguém que defende algumas ou maioria das pautas da direita), e apresentando argumentos por meio da escrita, da música, da poesia, de vídeos, enfim, várias formas de narrativa a serem usadas em diferentes momentos e, sempre que possível, seguindo a linha científica e não só com base nas experiências pessoais. Isso porque apesar de nossa divulgação científica ser pequena, a Ciência é uma das nossas principais ferramentas para construir argumentos de autoridade, mas não é necessário subir em nenhum pedestal.

É preciso ouvir a favela, o povão, a galera que apenas está cansada de tudo. É preciso disputar melhor as narrativas.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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