Está sabendo que o Voz das Comunidades está na CDD, não é? Então, para quem não conhece, vou contar pouco. O bairro foi criado em 1966 por um grupo de arquitetos, com o difícil desafio de planejar o maior projeto arquitetônico da vida deles, um Programa Habitacional de referência, entre o Largo da Freguesia e a Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. E, assim surge a CIDADE DE DEUS. A região viveu um processo de favelização com a chegada de famílias desabrigadas e retiradas de outras comunidades. Nos anos 2000, com a repercussão do filme ‘Cidade de Deus’, a favela ficou mundialmente conhecida, de uma forma não muito boa. Mas a arte tem apresentado bons exemplos para esse bairro cheio de histórias.
Com discussões sobre feminismo, gênero, raça e tantas outras, “Os Arteiros” se destaca pela personalidade e pela luta do grupo de teatro infanto-juvenil da CDD. Idealizado pelo cineasta Rodrigo Felha, pelo ator Ricardo Fernandes e pelo diretor Fernando Barcellos, o grupo, de apenas 6 anos, já recebeu prêmios como melhor direção, melhor espetáculo e categoria especial, com a peça “O que será de nós daqui a 4 anos?”. Além de fazer uma turnê de 10 dias, em três cidades da Alemanha, com uma adaptação de uma peça do autor clássico inglês William Shakespeare.
Os fundadores da trupe não faziam ideia do rumo e da proporção que o “workshop de teatro” iria tomar. “A nossa intenção era ocupar a mente das crianças dessa região, mas durante as aulas notamos que a necessidade não era só temporária. Havia uma necessidade de crescimento, principalmente individual. Pensamos que podíamos potencializar cada criança daquela”, lembra Ricardo. O ator começou a fazer teatro no colégio, querendo falar sobre questões sociais, e encontrou nos palcos essa possibilidade. “Durante o ensino médio dei aulas para jovens que tinham a mesma idade que eu, era muito legal. Aos poucos fui produzindo meus próprios textos e isso me fez perceber a importância do ator/produtor. Essa independência faz uma tremenda diferença”.
O encontro de Ricardo com Rodrigo
Felha foi na Central Única das Favelas (Cufa). Felha era professor de audiovisual e Ricardo era aluno dele; logo se tornaram amigos. Já Barcellos e Rodrigo se conhecem desde a infância. Os três têm ligações fortes e distintas com a arte. “Minha formação é em audiovisual, cinema, mas foi a direção de atores que me aproximou do teatro, naturalmente”, explica Felha.
Nos primeiros dois anos, a trupe se reuniu na quadra da escola de samba Coroados de Jacarepaguá e teve que se adaptar, pois não podia haver aulas em dias de ensaios na quadra. “Quando tinha ensaio escola em dias que também teríamos atividades, nós cancelávamos. Ficamos restritos. Foi aí que percebemos esse espaço, onde estamos há quatro anos, que era uma creche abandonada do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Pedimos a chave do local para ensaiarmos uma vez na semana. O local estava deteriorado, sujo, era usado até para prática de sexo e uso de drogas. A partir daí fomos buscar legalmente a cessão do espaço, via Governo do Estado, e lutamos por ele até conseguirmos a cessão por 10 anos”, conta Felha. O grupo se tornou uma ONG e começou a dar uma cara ao espaço, que passou por muitas mudanças até ficar com o jeito dos “Arteiros”.
►O DIFERENCIAL: Alguns dos diferenciais do grupo são a forma como cada jovem é orientado e a qualidade no ensino da trupe. Além das aulas de teatro, os jovens têm aulas de francês, canto e yoga, que agregam na carreira e trazem um diferencial para cada um deles. Mas para isso, os diretores exigem que os alunos sejam bons não apenas nos palcos, mas na escola e em casa também. “Mudamos os comportamentos de cada indivíduo arteiro. Eles são exemplos de boa conduta. Entrar aqui é legal, mas é muita responsabilidade, não é fácil. O fácil realmente não nos interessa”, declara o cineasta.
Ricardo falou sobre a vontade de trazer outras atividades para a trupe e explicou quais são as dificuldades que eles ainda enfrentam. “Seria bom se pudéssemos pagar cada profissional que ajuda esses jovens, mas como ainda não podemos, eles são voluntários e não é fácil conseguir esse apoio. Não acho que pobre deve ser voluntário, voluntário tem que ser quem é rico. Pobre é voluntário só por ser pobre. Um sempre acaba ajudando o outro, é uma vivência voluntária. Quando um pobre é voluntário, a probabilidade de ele abandonar o trabalho é muito grande, pois inevitavelmente vai precisar arrumar alguma forma de ganhar dinheiro, todos têm suas necessidades”, desabafa o ator.
Para Ricardo, o trabalho de formação se adequa melhor quando o jovem é mais novo e não tem a cabeça formada. “É difícil trabalhar uma pessoa quando já é maior de idade, a probabilidade de ela já ter muitas certezas na vida é grande. Do jeito que a gente fala parece difícil ser um arteiro, mas não é isso. Não queremos anular a juventude deles e a juventude tem vacilos, erros, falhas. Não são novos jovens, são os mesmos de sempre, mas agora auxiliados. Eles sabem que existe um lugar do tamanho do mundo que eles 外汇交易平台 querem ocupar, e não é simplesmente do tamanho que disseram para eles. Aqui eles enxergam o mundo da forma deles. É uma formação dinâmica, orgânica”. O ator afirmou ainda que cada um dos alunos demonstra respeito, empatia e sabe trabalhar em equipe. “São seres humanos sensíveis e abertos. Eles se sentem empoderados para seguir seus sonhos. Fazer o que querem fazer, não são limitados por serem moradores de favela. Os Arteiros e outros projetos em comunidades têm a missão de mostrar que sonhar é tão possível quanto realizar”.
Para Felha, formar arteiros traz um sentimento de transformação direta do ser humano. É, ainda, mostrar para as pessoas o quanto esse território tem uma efervescência de cultura, de pessoas querendo escrever, querendo fazer arte, querendo cantar. Para ele, basta melhorar a autoestima, pois às vezes o jovem é um ótimo escritor, mas por ter uma baixa autoestima, acaba escrevendo coisas que não tem a ver com ele. “Quando o jovem descobre o teatro, a autoestima levanta e ele encontra várias portas, vários acessos. Ele descobre aonde quer chegar e, no momento em que a gente percebe que ele realmente tem talento para fazer, damos a chance de praticar aquilo que gosta, seja produção, fotografia, canto… o que for”, conta Rodrigo.
Fernando sempre quis ser artista; aos 12 anos entendeu a proporção do teatro e soube que era o lugar certo para ele, que queria conhecer o mundo. Com a iniciativa de criar Os Arteiros, deu uma pausa na carreira de ator. “Achava que precisava investir num lance que as pessoas pudessem encontrar um caminho, assim como eu encontrei. O teatro me ajudou a trilhar os caminhos que queria para minha vida. Queria viajar o mundo, conheci 19 países, todos através do teatro e da arte. Era isso o que eu queria para o grupo, viajar. Quando fizemos a primeira viagem internacional, foi o momento mais representativo para minha história, enquanto indivíduo. Ver algo que você sonhou, também para o outro: isso dá um tamanho real de quem você é. Ouvi de uma menina do grupo: ‘que engraçado, o mundo é muito grande’. E, realmente o mundo é muito grande, e ele é nosso. O maior benefício que o teatro pode fazer para essas crianças é ampliar o mundo”, afirma o diretor.
O grupo busca se manter informado para debater em suas rodas de conversa, quase que diárias, sobre machismo, movimento negro, feminismo e gênero. “Recentemente tivemos uma de nossas meninas atacada em uma rede social e um menino do grupo compartilhou, achando que era brincadeira. Nós, da diretoria, o chamamos para conversar e explicamos que a ação dele foi machista. Ele falou que não sabia, então demos como penalidade escrever e fazer uma cena sobre machismo. Essa, sem dúvida, foi a melhor forma de ensiná-lo. Alertamos sempre isso para eles”, relata o cineasta.
Felha se orgulha em falar que o público da Cidade de Deus e de outras comunidades cariocas acompanha seus espetáculos dentro e fora da comunidade. Para ele, fazer teatro no Brasil é uma tarefa árdua. “Nossos espetáculos não são feitos para ficar na CDD, sempre nos apresentamos fora da comunidade. Nosso grupo reside na Cidade de Deus, mas é do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. O legal é que acabamos levando um público daqui e de outras comunidades para os nossos espetáculos. Público que nunca tinha ido ao teatro. Fazer teatro no Brasil não é fácil, você precisa estar sempre buscando soluções para driblar”, diz Rodrigo.