OPINIÃO | Escola pública e afeto: por uma prática dos elogios

O objetivo aqui hoje é contar para você um pouco do que é o “Ciência do Afeto”, estratégia metodológica que adoto no meu trabalho educacional na rede pública de educação e que é foco de uma pesquisa minha em parceria com a UNIperiferias (Universidade Internacional das Periferias). Só que não vou contar tudo do que compõe o “Ciência do Afeto” aqui, afinal, vou explicar tudo direitinho em um artigo no final da pesquisa que estou realizando. Dou uma palinha aqui. Neste texto me atenho a contar para vocês o que são as “práticas dos elogios” que integram o “Ciência do Afeto”. 

Já conversamos em outros artigos aqui no Voz o quanto nossos dados de reprovação e evasão escolar são assustadores, lembra? Se não viu os artigos, vem aqui e dá uma olhadinha em um deles. E, para não esquecer: meninos pobres e negros são os que mais sofrem com a reprovação e a evasão escolar, como você pode ver em artigos anteriores meus para o Voz e também em dois links: aqui e aqui. Nossos dados de reprovação e evasão escolar refletem parte das nossas desigualdades de oportunidades educacionais, que potencializam e refletem as desigualdades sociais mais amplas. 

Ok, aí você deve estar se perguntando: o que elogio tem a ver com isso? Eu também me fazia a mesma pergunta. Te explico: existe um conceito chamado “clima escolar”, que é o conjunto de características apresentadas por uma escola que ampliam ou reduzem o bem estar estudantil, de professores e gestores nesse ambiente educacional. E quando falamos dos jovens negros do gênero masculino, uma das possíveis explicações para que sofram mais com as desigualdades educacionais é o fato de que existe uma imagem associada ao homem, especialmente negro, que se caracteriza pela agressividade e pela violência, como argumenta a pesquisadora Marília Carvalho, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e como argumenta também o meu colega colunista Laerte Breno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em outras palavras: tem racismo em questão. E, uma outra informação: uma escola com clima escolar positivo é capaz de reduzir as desigualdades educacionais e favorece especialmente os perfis mais vulneráveis. Além disso, quanto mais os professores elogiam seus alunos, maior é a probabilidade de sucesso escolar dos estudantes. Sabendo de tudo isso, por que não pensar em um ambiente de sala de aula pautado na colaboração, nas altas expectativas docentes sobre (todos) os estudantes, em que as repreensões excessivas são substituídas gradativamente por elogios e estímulos positivos para melhoria? Por que não construir um ambiente escolar com base nos afetos para com todos os perfis estudantis, de maneira a elevar a qualidade das relações entre as pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem? Foram essas as perguntas que me fizeram criar o “Ciência do Afeto”, que tem como objetivo central a elevação do clima escolar positivo. E a “prática dos elogios” faz parte disso. 

No ano de 2019 criei, no Setembro Amarelo, o “dia do elogio” lá na escola onde trabalho. Fiz isso justamente porque é um mês voltado para saúde mental, que tem como uma das pautas a prevenção ao suicídio, que ocorre predominantemente entre pessoas negras, como eu trago neste artigo. O “dia do elogio” foi assim: eu coloquei nomes dos alunos em pequenos papéis coloridos e o papel de cada estudante continha o nome de um(a) colega, para que pudesse escrever um elogio sobre ele(a). A primeira parte mais divertida: ninguém sabia por quem seria elogiado. A segunda parte mais divertida: ao entregarem os papéis com elogios para seus colegas, cada um recebia em troca o papel com elogio sobre si. Isso porque todos elogiaram a pessoa por quem seria elogiado, sem que soubesse isso desde o início; então no fim, todos haviam se elogiado mutuamente, o que era o objetivo. Alguns tiveram dificuldade de elaborar o elogio, o que eu disse que era normal mas dei a certeza que a pessoa elogiada teria a mesma dificuldade, afinal, um estava elogiando o outro, mesmo sem saber. E busquei fugir das afinidades mais comuns, ou seja, coloquei para um aluno elogiar outro com o qual não tinha tanta intimidade, porque o grande objetivo do “Ciência do Afeto” é ampliar o clima escolar positivo, especialmente na sua dimensão social, que versa sobre a qualidade das relações interpessoais. É sobre formar uma equipe afetiva. 

Nesse dia também exibi o clipe “AmarElo”, do Emicida e também a música “Águia”, do Pureza Rap. E fui surpreendido: as turmas me entregaram montes e montes e cartas de elogio e agradecimento. Combinaram entre si e me deram elogios de presente. 

Após a atividade, já em outra aula, solicitei que os alunos escrevessem o que tinham achado do “Dia do elogio”. Surgiram muitas narrativas e, dentre elas, apresentei algumas no artigo publicado para a Revista Periferias e também sairá no artigo final da pesquisa com a UNIperiferias. Destaco, aqui, a fala do Kauan, até então no 8º ano, que disse que o “Dia do elogio”

É o dia que as pessoas escondidas na chuva sombria com raios de tristezas que fazem bagunças se lembram que existe um pôr do Sol lindo e amarelo (destaques dele). Com pessoas que se importam com ela, que se preocupam com ela, gente que não liga se ela é negra, lésbica, gay, se ela é da macumba ou da igreja, etc…só ligam pra pessoa boa que você é, só ligam pro seu bom coração e seu bom caráter então vá, deixei o sol limpar a bagunça da chuva e seja feliz.

Kauan, você é um poeta e sabe disso. Espero te ver crescer muito. Sinto orgulho de você. 

E trago aqui, também, o texto das alunas Jamilly e Esthela, até então no 9º ano:

Vítimas

Eu tô tentando escrever juro..não sei explicar, não sei falar, mas todos somos vítimas e eu não sei como podemos dizer isso.. não importa mano, coloca isso pra fora, isso vai te matar, isso tá nos matando. Vai lá falar com ela, conversa com ele todos somos humanos.. todos somos vítimas. Podemos não achar, podemos não querer sentir, podemos querer não demonstrar, mas no final acabamos como vítimas, presos em um lugar onde não queríamos, jogados em um canto sozinhos, sem esperança  de que um dia vamos ser libertos e deixaremos de ser vítimas e nos tornaremos os suspeitos; a vida nos torna a principal vítima e o principal suspeito, a principal dor e a principal alegria, e eu não preciso que alguém me diga o que eu tô sentindo eu sei o que sinto, eu sei e conheço a minha dor…

Somos o personagem principal de uma história que não podemos mudar, uma história que muita das vezes não somos nós que escrevemos, o lápis e o papel não estão em nossas mãos, não temos o domínio de nada, nem da alegria, nem da dor, nem do amor, nem da vida, não temos controle sobre quem amamos, não sabemos se ficaremos desapontados com a pessoa depois .. então nos rendemos e, no final, somos vítimas de uma decepção que acaba com tudo, presos em um mundo que não deveria ser nosso.Essa poderia ser facilmente a minha carta de despedida, mas eu não sou uma vítima, eu sou o principal suspeito, quando na verdade deveria ser a principal vítima, prestes a ser assassinada por uma sociedade que as poucos está me sufocando.

Escrevo esse texto como uma forma de pedir socorro, como uma forma de me libertar, porém mais uma vez eu fracassei, mas como eles dizem… eu não sou vítima, eu sou o meu próprio assassino, e esse julgamento está sendo encerrado…

Desculpa pai, desculpa mãe, desculpa amigos, tudo que vai volta, talvez nem tudo, como esse texto, como o principal assassino… como a principal vítima.

Meninas, eu disse que ia publicar, então promessa cumprida, viu? Continuem sendo o sucesso que são.

Essas falas vieram após o “dia do elogio” e a segunda narrativa vem de duas jovens escritoras que se sentiram inspiradas após a atividade escolar. No fim das contas, muitas atividades realizadas na escola também podem (e devem) envolver o interesse de estimular a criatividade; o processo criativo permite maior conhecimento sobre os estudantes e suas inquietações e, ainda, fortalece habilidades acadêmicas, artísticas e socioemocionais. As meninas me enviaram o texto para que eu lesse, mesmo eu sendo professor de Ciências.  Entendo que isso também sugere qualidade das relações interpessoais. 

Este texto não se encerra em si, há muitos aspectos envolvidos na questão dos elogios e muita informação também se relaciona com outra prática de elogios que eu estabeleço, que é o caderno de elogios, para ser uma alternativa ao “livro de ocorrências”, comum em escolas. Mas o texto dobraria de tamanho se eu falasse sobre esses cadernos nesse momento. Você pode conhecer melhor o “Ciência do Afeto” no já mencionado artigo para a Revista Periferias e, por hora, quero usar esse texto e as evidências científicas aqui apontadas para sugerir a urgência de mais práticas baseadas em estímulos positivos e bem estar na escola. É sobre disputar os jovens e mantê-los de maneira consistente na escola para, aí sim, construir estratégias para aprendizagem (e a elevação do clima escolar positivo já é uma delas). 

Se quiser se envolver mais nesse e em outros debates educacionais, me siga nas redes sociais: @profwilliamcorrea (Instagram), @williamcorrearj (Twitter) e Professor William Corrêa (Facebook). Ah, tem o canal do YouTube também

Que a gente fortaleça cada vez mais uma Educação baseada em evidências científicas, com compromisso inegociável para uma Educação antirracista e para combate às desigualdades de oportunidades educacionais.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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