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OPINIÃO | “Tudo devia parar”

Foto: Beatriz Diniz
Foto: Beatriz Diniz
Complexo do Alemão. Foto: Beatriz Diniz

O tempo passou, o mundo mudou, o país mudou, mas, o abuso de poder do regime militar ficou entranhado nessa polícia militarizada. Policial sem identificação. Polícia patrulhando defensores de direitos humanos. Policial esculachando estudantes saindo da favela pra faculdade. Polícia oprimindo, física e psicologicamente, cidadãos pagantes de impostos como se não tivesse lei no país. Policiais chamando inocentes de criminosos, acusando sem provar, julgando, sentenciando e executando a sentença que deram.

Não é pra isso que as polícias existem. Policiais deveriam servir à sociedade como qualquer outro funcionário público, trabalhar a serviço da cidadania, pra proteger cidadãos. Mas a proteção aos cidadãos é seletiva, e essa seletividade hoje é ostentada por autoridades odiadoras, pessoas horríveis, uma mistura do mal com atraso atualizada com altas doses de sociopatia. No Rio de Janeiro, a gente tá vivendo o ápice desse ciclo matador e sem interesse de autoridades em políticas públicas que combatem desigualdades, com esse ex-juiz que tá governador mandando a polícia matar, que conhece as leis e não respeita direitos, que sorri sempre que repete as palavras abate e fuzil, que a cada pronunciamento parece revelar um retrato com sua cara respingada de sangue pra atiçar odiadores votantes. 

Milícias se expandindo pelo estado do Rio. A política de Estado de Segurança Pública criminosa pra moradores de favelas e periferias, chamada de “guerra contra narcotraficantes”, dando a sensação de que funciona pra viabilizar a transição entre quadrilhas. O cara que tá na presidência e seus filhos curtem milícias, homenagens a milicianos e emprego pra seus familiares.

Brasil filial do Rio, eterna frase sensata do Anderson França. Violências e abusos de poder no campo e nas cidades, milícias rurais e urbanas, contra indígenas, pretos, ribeirinhos, pobres. O país conduzido pro abismo profundo por autoridades sem um projeto sequer de construção, desenvolvimento, paz. Tudo girando a partir de arma, ódios, preconceitos, inversão de leis, deturpação de fatos, desrespeito a direitos, desmonte de políticas públicas com benefícios coletivos, destruição de valores e princípios de convivência e civilidade.  

Da crueldade à cumplicidade

 No Rio, quem chega num bairro com esse programa de milícia oficial presente logo vê agentes comendo de graça na lanchonete, na barraca de tapioca, esculachando quem tá na situação difícil de morar na rua, ocupados no celular, balançando cacetetes. Moradores fazem de conta que tá bom. Num tá não. Abuso de poder e opressão da cidadania não resolvem, não são solução. 

Por um lado, elites classe e média fazendo de conta que têm sensação de segurança por causa dessa milícia oficial presente em algumas ruas de alguns bairros. De outro, moradores com seus direitos básicos negados e violados, sob tiroteios diários, com casas invadidas, bens avariados, tratados como criminosos que não são. A existência desse abismo é aviltante. A aceitação desse abismo é repugnante. 

As elites e a classe média, confortáveis com a falsa sensação de segurança, às custas da negação e da violação de direitos, caladas diante da opressão sobre famílias que moram nas favelas, tão dando boas vindas pra convulsão social, abraçando o fracasso. Enquanto o governador Wilson Witzel faz performances de macho alfa que agrada a plateia fanática por ódios da “nova era”, a sociedade falha na omissão, no silêncio, na cumplicidade com essa política de Estado criminosa. Crianças mortas por policiais em operação NÃO É NORMAL nem é aceitável ou negociável. 

Não é com ódio que se constrói um lugar bom de se viver, é com respeito à lei, aos direitos básicos, às diferenças e à vida. Crianças mortas, feridas, traumatizadas, sem aulas, sem direitos, sem paz não são “dano colateral” muito menos resultado que se avalie como satisfatório. O governador é responsável pela morte de inocentes. Ele saliva ódio seletivo e cospe esse ódio sobre famílias destroçadas e sobre uma sociedade parte apática, parte adoecida e parte conivente, cúmplice.

Atirar do helicóptero, abrir fogo em ruas lotadas de gente, operação em horário de ida pro trabalho, pra escola. Com ordem do governador. Nada disso torna uma ação policial eficaz. Isso chama aterrorizar e controlar pelo medo. É covarde e cruel amedrontar, oprimir, traumatizar, adoecer famílias que trabalham, pagam impostos, têm direito à políticas públicas, serviços públicos, à pertencer à cidade em que vivem. Sendo política de Estado, é o crime que o governador comete dia após dia, sorrindo.

Gente é pra viver e ser respeitada

Quanto mais polícia violenta nas favelas mais fácil pras “ôtoridades” alegarem que não podem investir em políticas públicas, projetos, ações nessas áreas. Sob tiroteios, escolas e creches não abrem ou não podem oferecer aulas, atividades educacionais. Crianças e jovens alvos dia após dia, perdendo o direito básico de estudar, adoecendo precocemente, traumatizadas, sendo obrigadas a aprender o que é medo e revolta e transformar em resistência.   

  Autoridades que validam violências e instigam esse ódio contra moradores de favelas também vão contra moradores que resistem com amor e orgulho. Cultura, esporte, educação, meio ambiente, jornalismo, direitos humanos, é fenomenal o que ativistas realizam pra cobrir a ausência do Estado com políticas públicas e se contrapor à presença do Estado que criminaliza pobres. 

Não pode ir comprar pão. Não pode ir pro treino de futebol. Não pode ir pra escola. Não pode estudar. Não pode voltar pra casa. Não pode estar em casa. Não pode tá trabalhando numa laje. Não pode nem estar sem fuzil. A política de Estado criminosa do governador do Rio é a oficialização da barbárie. Eu repudio. Eu repudio. Eu repudio.

No dia em que no mundo crianças e jovens defendiam seu futuro numa greve global pelo clima, inclusive denunciando o racismo, o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo como as raízes da crise ameaça a humanidade e que também garantem a continuidade das desigualdades, a noite caiu com a violência pesando sobre mais uma família de favela no Rio. Ághata, de 8 anos, inocente e desarmada, nunca mais volta pra casa, foi baleada, morreu, tão ferida que seus órgãos não puderam ser doados. 

Não é caso isolado. Até o dia 21 de setembro: 16 crianças vítimas de violência armada neste ano no Grande Rio, 5 mortas [matéria do El País com dados da plataforma Fogo Cruzado].  

Moradores de favelas e periferias SÃO CIDADÃOS! Não são criminosos e não podem ser tratados como criminosos. Se a favela não sai pra trampar, a cidade para. E trabalhadores saem pro serviço mesmo sob tiroteios, trabalham sabendo que o aço tá descendo perto da escola de seus filhos, suas netas. Ainda assim, a elite vira a cara, ingrata, mesmo dependente de quem trabalha e carrega a carga da criminalização por ser pobre e morador da favela, da periferia. 

O que fica, e a sociedade não reconhece, é a dignidade dos que sofrem, a dignidade. A dor. Os traumas. A negação e a violação de direitos. A criminalização da pobreza. A política de Estado criminosa pra segurança pública. O abuso de poder, o esculacho. Isso tem que parar. E é a sociedade que tem que exigir que pare. “Tudo devia parar” [Raull Santiago].

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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