Sociedade e mídia trabalham juntas na missão de marginalizar pretos e pobres.
Texto: Rick Trindade
O funk é som de preto e de favelado. Em um país onde o racismo é estrutural, tudo aquilo que é criado ou ligado aos pretos e pobres é marginalizado. Em 2017, uma ideia legislativa sugerida pelo empresário Marcelo Alonso no portal E-cidadania, tinha como intenção fazer com que o funk fosse considerado um “crime de saúde pública”. A proposta recebeu em torno de 20 mil assinaturas e foi convertida para a Sugestão n° 17, de 2017.
Em resumo, o empresário sugeriu que o funk seria uma “falsa cultura”, e que os bailes servem para a prática de crimes, como o tráfico de drogas e até estupro. O que se percebe é que o Marcelo fez questão de apagar todo o valor cultural e social que o funk carrega, e quanto o ritmo serviu e serve de empoderamento, reconhecimento e fonte de renda para pessoas que em sua maioria vivem à margem da sociedade. Porém, em 13 de setembro de 2017 a proposta foi condenada de forma unânime, chegando a ser sinalizada como uma ofensa às liberdades individuais.
O funk conseguiu romper as barreiras da favela, explodiu no país inteiro, e como geralmente acontece com o que cai no gosto popular, acaba chegando em lugares elitizados. Só assim o ritmo musical começou a ser visto com mais respeito, por que para a sociedade, deixou de ser só “música de favelado”. Porém, dependendo do ambiente onde é tocado, o funk volta a ser visto como um ritmo marginalizado. Percebe-se que o problema não é só como o ritmo musical, mas sim onde ele toca, por quem ele é tocado, e quem está dançando. É muito comum haver truculência em intervenções nos bailes na favela ou adjacências, coisa que nunca se viu, ou vai se ver, em lugares elitizados que estejam tocando o ritmo.
Foto: Jeferson Delgado / Portal KondZilla
Rennan da Penha, DJ e idealizador do “Baile da Gaiola”, maior baile funk do Rio de Janeiro, que acontece no Complexo da Penha, foi condenado por associação ao tráfico de drogas com pena prevista de seis anos e oito meses em regime fechado. Consta no processo que uma testemunha aponta Rennan como o “DJ dos bandidos”, “sendo ele responsável pela organização de bailes funks proibidos nas comunidades do Comando Vermelho, para atrair maior quantidade de pessoas e aumentar as vendas”. O desembargador Antônio Carlos Nascimento Amado, da Terceira Câmara Criminal, indica que Rennan é “olheiro” que avisava a movimentação da polícia na favela, tudo isso baseado em conversas do DJ no WhatsApp.
Entretanto, isso é uma atitude comum entre os moradores das comunidades, que preocupados com seus familiares e amigos, avisam sobre as ações da polícia. Um outro motivo que foi levado em consideração na acusação de Rennan foi a demonstração de afeto do DJ com pessoas que aparentemente são envolvidas com atividade criminosa. Afeto esse que o DJ também demonstra pelas crianças da comunidade onde nasceu, o Complexo da Penha, e pelas crianças do Complexo do Alemão. Esse ano ele distribuiu material escolar para várias delas, e de certa forma vinha fazendo o papel do Estado que deveria se preocupar mais com a educação e a condição de vida dessas crianças e também com as outras questões da população periférica.
Percebemos como o racismo e a criminalização da cultura negra funciona nesse país, Rennan representa tudo aquilo que nossa sociedade racista detesta: o preto pobre que consegue crescer na vida, ascender socialmente e fazer sucesso, e nesse caso especialmente, tocando funk, motivos suficientes para o Estado automaticamente olhar o DJ como um criminoso. No auge da sua carreira, fazendo muito sucesso na internet, Rennan inovou o cenário do funk nacional, jovem preto e da favela é visto como referência para muitos outros que enxergam nele um exemplo de que se é possível alcançar outros lugares e romper estigmas. Mas parece que o Estado se interessa muito mais em ofertar violência, manter a falta de oportunidades, e consequentemente, fazer com que falte perspectivas para esses jovens que só querem sonhar e ter uma qualidade de vida melhor.
Foto por: Jeferson Delgado / Portal KondZilla
A pergunta que fica é: será que se Rennan fosse branco, aconteceria isso tudo? Se ele fosse um DJ branco que toca em festas onde a maioria do público é de pessoas brancas e em espaços elitizados, onde certamente há consumo de drogas lícitas ou ilícitas, ele seria condenado?
Não dá para negar que além da tentativa de criminalizar um ritmo musical nascido na favela, há também o racismo. No país onde pessoas pretas não podem conquistar espaço, não podem ganhar dinheiro, não podem ficar ricas sem que ainda assim sejam vistas como marginais, sem que haja dúvidas da sua capacidade e da legalidade do seu trabalho.
A tentativa de criminalizar o funk nada mais é do que a manutenção da ideia de que tudo que vem do preto, tudo que vem da favela é ruim ou tem ligação direta com a criminalidade, e todo esse pré-conceito é reforçado pela grande mídia que se empenha em manter essa ideia no imaginário popular, a exemplo da matéria que foi exibida no Fantástico, no dia 31 de março deste ano, que relata o caso de Rennan numa tentativa de explicar o porquê dele ter sido acusado e condenado.
É o racismo e o preconceito impregnados nessa sociedade que não nos deixam dormir, que roubam nosso sono e que tentam roubar até a alegria que se tem ao dançar um funk na esperança de esquecer um pouco toda essa realidade perversa que vivemos.
Foto: Jeferson Delgado / Portal KondZilla
E como diz o rapper Baco Exu do Blues “Tudo que quando era preto, era do demônio, e depois virou branco e foi aceito…”