É comum, nas aulas de literatura do ensino fundamental e médio, nos deparamos com a presença de livros como os de Monteiro Lobato, Ferreira Gullar, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. Foi com base nesses, inclusive, que, inconscientemente, fizemos uso de uma persistente exclusão literária de mulheres dentro do país, no qual vivemos.
A invisibilidade artística feminina, nessa visão, é um impasse enraizado na sociedade que ultrapassa a nossa faculdade individual de enxergar o mundo. Até meados de 2017, por exemplo, não tínhamos noção da existência de Carolina Maria de Jesus, sendo uma mulher negra e favelada. Em seu primeiro livro publicado, é perceptível a presença de uma escrita dura, direta e, não por acaso, realista. Os livros de Carolina Maria de Jesus conflitam com o real, não só retratando a verdade, como sendo a verdade em si. É da raiz da literatura que advém o lugar de fala. Por conta da miséria, das supostas ‘’fofocas’’ e de resistente esperança, a escritora é clara e objetiva no livro quanto a insatisfação que tem com a política brasileira.
Enfrentando o cansaço, as tonteiras, o desânimo e, dependente do clima e do movimento para ter sucesso nas coletas pelas ruas, a autora de ‘’Quarto de despejo’’, fazia dos papéis e cadernos achados nas calçadas e latões, instrumentos de suas escrituras. Nada envergonhada escreve repetitivas vezes em seu diário, que o trabalho a tornava útil, dando o poder de criar os filhos pequenos, Vera Eunice e José. O fato diferia a rotina de independência em que vivia, das demais mães do Canindé. Estas foram movidas sob as ordens de maridos, dos quais, segundo a escritora, seriam submissas.
Outra mulher, nascida anos após a existência da Carolina, é a escritora Conceição Evaristo. Nascida em 29 de dezembro de 1946 numa favela da zona sul de Belo Horizonte (MG). Filha de uma lavadeira que, assim como Carolina Maria de Jesus, mantinha um diário onde anotava as dificuldades de um cotidiano sofrido, Conceição cresceu rodeada por palavras. Teve que conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica, até concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos.
A poeta traz em sua literatura profundas reflexões acerca das questões de raça e de gênero, com o objetivo claro de revelar a desigualdade velada em nossa sociedade, de recuperar uma memória sofrida da população afro-brasileira em toda sua riqueza e sua potencialidade de ação. É uma mulher que tem cuidado de abrir espaços para outras mulheres negras se apresentarem no mundo da literatura.
Portanto, precisamos de mais negras e negros, moradoras e moradores da periferia, trabalhadoras e trabalhadores escrevendo visivelmente, não para coletar um punhado de “testemunhos” (o nicho em que em geral são colocados), mas para que sua sensibilidade e sua imaginação deem forma a novas criações, que refletirão, tal como ocorre entre os escritores da elite, uma visão de mundo formada a partir tanto de uma trajetória de vida única quanto de disposições estruturais compartilhadas.