“Este livro é uma escrita de cura, uma afirmação de que é preciso dizer o que tanto querem silenciar. Precisamos olhar para nossos afetos, para nossas chagas, dores, lembranças e memórias. As páginas que se seguem têm cheiro, gosto e cotidiano de uma família dilacerada que viu sua rota alterada pela brutalidade e pela impunidade que hoje são soberanas nas terras cariocas.”
Epístola vem do Grego. Um palavra que revolucionou a comunicação à distância desde a invenção da escrita até meados do século XX – quando a telefonia popularizou-se. Epístola, no português, significa carta. Para a família Franco, cartas/estas são atemporais e um potente instrumento de externação dos sentimentos. Lançado no último final de semana na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, o livro Cartas para Marielle visa eternizar os afetos pela filha primogênita, como destaca a escritora, jornalista e também irmã de Marielle Franco, Anielle.
Na fatídica noite do dia 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados após a roda de conversa “Jovens Negras Movendo Estruturas”, no bairro da Lapa. Passados um ano e cinco meses do crime, a Polícia Militar prendeu o PM reformado Ronnie Lessa, responsável pelos disparos, e o PM expulso da corporação Élcio Vieira, quem dirigia o carro. No entanto, foi incapaz de responder: Quem mandou executá-los?
Cria da Maré, Marielle era mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense, a UFF, e pautou sua trajetória de militância comprometida na redução das desigualdades sociais e por assegurar os direitos das minorias. Na corrida eleitoral municipal de 2016, disputou pela primeira vez uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio. Adotou como slogan de campanha o princípio filosófico africano, Ubuntu, presente nas culturas Zulu e Xhosa: “Eu sou porque nós somos”. Mulher negra, feminista, socióloga, favelada, Marielle apresentava uma proposta de mandato no qual era possível reconhecer-se. Os 46.502 votos que a elegeram viram uma energizante vontade de provocar mudanças estruturais. E não estavam enganados.
Um sábado anterior à execução, Marielle recuperou posts do coletivo Fala Akari que, no dia de 10 março, denunciou as faces truculentas e opressivas de uma operação policial. Em sua página no Facebook, Marielle compartilhou o post e comentou: “Sábado de terror em Acari! O 41° Batalhão é conhecido como Batalhão da Morte. É assim que sempre operou a Polícia Militar do Rio de Janeiro […]. CHEGA de esculachar a população. CHEGA de matar nossos jovens.” A vereadora depois acrescentou: “Precisamos gritar para que todos saibam o que está acontecendo em Acari […]. Nesta semana, dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior.”
No dia seguinte, o jornal O Dia publicou as denúncias do Fala Akari e os comentários da vereadora. Por meio de comunicado oficial, também reproduzido pelo jornal, a PM confirmou a operação e destacou uma lista de apreensões. A respeito das violações de direitos e sobre as mortes ressaltadas por Marielle, nenhum comentário. O 41° Batalhão de Polícia Militar patrulha quinze bairros carioca, dentre eles, Acari. As estatística apontam que o batalhão é um dos mais letais do Rio.
Do lado de cá
Conversei com Anielle Franco no dia 15 de julho, no Museu de Arte do Rio. Acontecia neste dia a Flip-Flup, realizada pela Festa Literária das Periferias (FLUP) sempre um dia após a Flip. A ideia de escrever o livro, ela conta, que já havia surgido e foi endossado ao ver seus pais, profundamente emocionados, escreverem cartas à Marielle todas as noites. “O livro nasce das lágrimas dos meus pais, de vê los muito emocionados com aquilo e eu querer digitalizar aquela memória e eternizar aqueles sentimentos.”
Cartas para Marielle resgata o íntimo da família Franco depois do 14 de março. Na carta que abre o livro, seu Antônio, pai de Marielle, relembra como foi receber a notícia do assassinato. Depois de uma noite inquieta, que mais parecia um presságio, o dia transcorreu tranquilamente. À noite, porém, assistindo ao jogo do Flamengo contra o Emelec, pela Libertadores da América, recebeu a pior noticia da sua vida: Marielle foi alvejada. Marielle “uma mulher que não se curvava a fatos covardes, que continuam acontecendo, intimidando as mesmas pessoas nas mesmas comunidades que ela sempre ousou em defender” morreu.
Anielle lembra, em uma das cartas, o quão difícil foi reconhecer o corpo de sua irmã no IML. O largo sorriso no rosto, tão presente em fotos, estava perfurado por três furos. “Nem eu meu pior pesadelo eu imaginei viver algo assim”. A irmã querida, companheira dos bailes funk, dos abraços afetuosos, dos corres, dos incentivos, dos carinhos, dos conselhos, das marmitas, foi violentamente assassinada. Nos almoços comemorativos, durante o tradicional momento da oração, não se ouve mais a voz de Marielle.
Luyara, filha de Marielle, relata que num dos momentos mais esperados de sua vida, o ingresso em uma universidade, não pôde vivenciar com a mãe. A dor da perda se manifesta também nos pequenos detalhes. É o sorriso que alegrava, o abraço que consolava e trazia paz, os sonhos planejados pelas duas. Um vazio delicado de se lidar, mas que tem gerado ainda mais força para seguir. “Serei resistência porque você foi luta!”, frase que encerra uma das cartas.
Momentos antes da última mesa que encerrou a Flip-Flup, Anielle fez a leitura de duas cartas ao público que lotou os pilotis do MAR. Ao final, uma voz ecoou “Marielle” e todos responderam “Presente”. Quando conversamos, perguntei à Anielle acerca do intuito do livro. Para além de eternizar os momentos da esfera pessoal de Marielle, o livro pretende reforçar as lutas após 14 de março. Isso porque muitas notícias falsas têm sido circuladas com o objetivo de desqualificar e incriminar Marielle.
O jornal O Globo, no dia 18 de março de 2018, listou algumas notícias falsas com as comprovações de inveracidade. Franco foi acusada desde de ter sido eleita pelo Comando Vermelho, facção criminosa, até “de fazer campanhas injustas contra a policiais”. Assim, a situação da morte, por si só indignante, ganhou contornos perversos de pessoas que pareciam querer assassiná-la mais uma vez. “O livro é para pessoas veem o que temos passado. Tem muita coisa dita que não é verdade. É uma luta da família que, ou você tem uma empatia, ou você fala besteira. A gente tenta, no livro, manter o que a temos passado no dia a dia e como estamos sobrevivendo”, ressalta Anielle.
Uma das homenagens mais icônicas à Marielle era uma placa com os dizeres “defensora dos direitos humanos, covardemente assassinada”. Afixada na Cinelândia junto a outros mobiliários urbanos, foi destruída pelo então candidato a deputado estadual pelo PSL, Rodrigo Amorim, ao lado de também candidato do PSL, só que a governador, Wilson Witzel. Ambos elegeram-se. O ato causou revolta e milhares de placas similares à despedaçada foram produzidas.
Somando este caso, o período eleitoral expôs muito da desonestidade em prol do benefício próprio. A imagem de Marielle era tão o mais frequente ao dos políticos que colavam sua proposta de candidatura ao legado de Marielle. Entretanto, cabe perguntar: Quem realmente está disposto a lutar pela minorias? Quem tem trabalhado em territórios marginalizados e feito algo? Quem tem olhado para juventude e potencializado seus talentos? Quem tem caminhado junto aos movimentos sociais? Quem tem compreendido que política não se faz só em eleições? Quem tem lutado em ambientes altamente hostis lembrando-se do que prometeu? Quem não tem esquecido de onde veio? Quem, por fim, entende o que significa “Sou porque somos” e não tem medidos esforços para impulsionar os mais afetados por um país racista e desigual?
O legado de Marielle é reconhecido pelo mundo. Em Paris, a prefeita da cidade nomeará uma rua com seu nome. Dos nossos vizinhos argentinos à longínqua Itália, assistimos pessoas homenageando à luta de Marielle em respeito e agradecimento a caminhada corajosa e comprometida trilhada pela filha da Marinete.