#Opinião: Autoestima negra e a rejeição de corpos fora do padrão

Por definição, autoestima é: qualidade de quem se valoriza, se contenta com seu modo de ser e demonstra, consequentemente, confiança em seus atos e julgamentos. Realidade ainda tão distante de muitos de nós negros. E ainda que pessoas negras já tenham uma autoestima estabelecida, é muito fácil destruí-la, mesmo que parcialmente, porque o racismo é um mecanismo cruel.

Quando crianças, a família tem um papel essencial na ajuda da construção dessa autoestima, já que a escola geralmente é o primeiro ambiente em que nós entramos em contato direto com o racismo, e se já de crianças temos uma autoestima fragilizada, o processo dessa construção de um olhar para si mesmo com mais respeito se torna ainda mais difícil. Mas vale ressaltar que para que isso aconteça, os pais (negros) precisam também se reconhecer como pessoas bonitas, capazes, e amar seus traços. 

A geração tombamento é um acontecimento relativamente novo. Ainda há pouco tempo, crianças, jovens e adultos negros, em sua maioria, negavam seus traços negróides, seu tom de pele e seus cabelos naturais. Aos poucos já é possível perceber que esses mesmos grupos de pessoas pretas estão começando a se aceitar de uma forma melhor, a se enxergarem com mais carinho e amor. Porém, isso não necessariamente significa que essas pessoas têm uma autoestima elevadíssima, e que o racismo não vai mais as abalar. 

“Nos últimos anos veio uma forte influência americanizada de um novo conceito de beleza que seria essa a ‘geração tombamento’, ainda assim esse conceito agrega apenas pretos magros e/ou de pele clara. O processo de construção de autoestima ao meu ponto é muito mais difícil entre os retintos, principalmente pelo fato que quase não se existir ou se omitem os corpos reais e gordos. ” (Isaquiel Winchester) 

Legenda: Isaquiel Winchester, 28 anos, Modelo Plus Size / Ator. Twitter

E nessa corrida de se sentir aceito (a), desejável, e conseguir se olhar no espelho e se enxergar como uma pessoa bonita, sensual e sexy, algumas pessoas pretas acabam involuntariamente deixando com que seus corpos sejam objetificados e hipersexualizados. Alguns percebem essa realidade, mas ignoram, por que acreditam que a “recompensa” é maior do que o problema. Mas aqui eu não quero apresentar a hipersexualização como uma criação ou culpa do povo preto, essa não é a minha intenção, nem o que acredito, já que, conscientemente ou não, somos reféns dela.

Desde sempre nossos corpos são animalizados. Mulheres pretas eram vistas apenas como um bom corpo para reprodução, e atualmente, são vistas na maioria das vezes como um corpo para o sexo e quase nunca para um compromisso sério. Homens negros são vistos como os bem-dotados, os homens quentes e sempre com apetite insaciável para o sexo. 

Dessa forma, pretos e pretas, principalmente aqueles que eram rejeitados e cujo preterimento era ainda maior por não estarem dentro do padrão de beleza que a sociedade deseja, acabam cedendo e, de certo modo, viram reféns desse mesmo padrão (e em muitos casos, não consideram a saúde como uma prioridade).

Vale ressaltar que tenho total noção de que o padrão de beleza estabelecido na nossa sociedade é um padrão eurocêntrico, no qual só é vista como bonita a pessoa branca, de olhos claros e magra/sarada. Mas eu não posso desconsiderar que há um padrão corporal, que faz com que pretos e pretas que estão dentro desse padrão sejam um pouco menos preteridos e rejeitados, e isso não significa que seja algo positivo, ou que há uma quebra total do padrão de beleza. 

E se a gente afirma que o gosto é uma construção social, que a rejeição e preterimento que pessoas pretas sofrem é fruto dessa construção, não podemos negar que a rejeição por corpos fora do padrão também é resultado dessa construção do gosto. Infelizmente, pessoas pretas que se encaixam no padrão corporal tendem a rejeitar pessoas pretas fora do padrão, e isso se agrava um pouco mais se a pessoa em questão tiver a pele retinta.

Mas se você perguntar a esse preto ou preta, se ele ou ela rejeita uma pessoa gorda, muito provavelmente você ouvirá uma negação. Nem sempre é fácil perceber que mesmo sofrendo opressão, pretos e pretas também podem oprimir, e nesse caso em específico, sendo gordofóbicos

“…eu percebo inclusive um novo padrão foi criado para a beleza de pessoas negras mulheres como Jorja Smith, Tessa Thompson  e Rihanna são vistas como bonitas, opções afetivas e um padrão a ser seguido. E homens como o Michael B Jordan tem a pele mais escura, mas é extremamente sarado, traços negroides mais “delicados” e isso é gerar um novo padrão, um padrão também gordofóbico. Os cabelos mais próximos da textura lisa que é o cacheado, traços mais finos e a pele mais clara entrando aí também a questão do colorismo. As pessoas negras mais claras também sofrem racismo, mas é mais fácil ver uma pessoa negra de pele clara e corpo padrão com algumas oportunidades que são negligenciadas a pessoas negras retinta e gordas. E infelizmente isso não é dividir o movimento e entender que as opressões funcionam de forma diferente mesmo dentro de um grande grupo como o da população negra.”  (Kleriene Vilela)

Kleriene Souza, 27 anos, Estudante do 4º ano de medicina. Twitter

E por mais que atualmente haja na internet vários perfis nas diversas redes sociais que dizem exaltar a beleza do povo negro, aos poucos vem surgindo um padrão do que é considerado um preto bonito ou uma preta bonita. Precisa ser magro ou sarado, precisa ter um bundão, precisa ter o cabelo cacheado, precisa não ter os traços tão marcantes.

E quando o racismo que já sofremos da sociedade se une à gordofobia que geralmente é reforçada nesses perfis, quando os mesmos excluem a existência de corpos gordos, se torna ainda mais difícil para uma pessoa preta e gorda conseguir construir uma boa autoestima. Por isso afirmo que o processo da construção de uma autoestima não acontece da mesma forma com pretos dentro do padrão corporal, e geralmente de pele clara, e com pretos fora do padrão e principalmente de pele retinta. 

Alef Bass, 25 anos, Contabilista. Twitter

“Justamente por essas páginas reproduzirem fotos de pretos dentro do padrão estético eu não me sinto representado. Por outro lado, também resolvi que não vou deixar por isso mesmo, então tenho um perfil no instagram (@temmeutamanho) em que exalto corpos negros e gordos, tento juntar uma comunidade de homens negros e gordos porque eu realmente acho importante se enxergar e é incrível quando alguém diz que adora o que eu faço e que eu ajudo porquê de alguma forma isso me ajuda muito também. ”  (Alef Bass)

Pretos sofrem diariamente com o racismo. Gordas sofrem diariamente com a gordofobia. Pretos gordos e pretas gordas sofrem diariamente com os dois. Não há como escolher por qual sofrer num dia. Em ambientes brancos, sofremos um pouco mais por sermos pretos. Em ambientes com a maioria de pretos, sofremos por sermos gordos.

Luana Carvalho Machado, 20 anos, Técnica em administração. Twitter

“A gordofobia racista existe e as únicas pessoas que sofrem ela são os gordos negros. O racismo perpassa e fundamenta a vida de pessoas negras de forma violenta assim como a gordofobia. Mas a pessoa que sofre os dois consegue ter uma vida ainda mais perversa. Na minha experiência como gorda negra o racismo e a gordofobia andam juntos. Nunca sofro um ou outro, mas sempre os dois, sempre fui a “nega gorda” dos ambientes, a gordofobia me bate e o ódio pela minha pele também, sempre os dois. A vida de uma preta gorda é baseada em ódio e auto ódio porque somos o pior que existe na sociedade, ser gordo é aquilo que as pessoas mais temem só na possibilidade de engordar, ser negro é aquilo que as pessoas mais odeiam em ter que conviver. ” (Luana Carvalho Machado)

Nos dias atuais, há um movimento na internet em que pessoas fora do padrão estão se expondo de uma forma positiva, e estão pregando a aceitação e respeito por corpos gordos, mas se você for parar para analisar, em sua maioria, essas pessoas são brancas. Pretos gordos e pretas gordas continuam sendo excluídos. Para nós resta apenas a mais severa solidão. 

E para finalizar, deixo aqui as respostas de uma das perguntas que fiz aos pretos e gordos que me ajudaram na construção desse artigo, e deixo que eles e elas falem por mim. A pergunta era: Por fim, você acha que pessoas pretas estão amando pessoas pretas e gordas?

E as respostas foram: 

“Estão sim, na internet, no politicamente correto. Mas na vida real sabemos como realmente é!”  Isaquiel Winchester 

“Não, não acho. Acho as opções afetivas ainda estão em ampla maioria voltadas para o mais próximo do padrão imposto socialmente.” Kleriene Vilela 

“Eu acho que estamos fazendo esse questionamento cada vez mais. E isso já é algo importante, mas por outro lado ainda tem muito a ser discutido e enfrentado, pertencer a um grupo que é oprimido não te exime de também oprimir outro grupo, então também é preciso discutir gordofobia quando discutimos raça.” Alef Bass.

“Não. As pessoas precisam desconstruir a ideia de que um corpo preto gordo não é possível nas diversas áreas da vida e eu percebo que a maioria não está disposto a ouvir um preto gordo.”  Luana Carvalho Machado.

Agora pergunto a você: Você tem amado pessoas pretas e gordas? 

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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