O gorila, a criança e a comoção virtual

Uma criança de 3 anos escapa do cuidado dos pais num passeio em família, e termina caindo na jaula que abriga um gorila de 180 kg, ficando “aos cuidados” do animal por alguns desesperadores momentos de suspense. Essa história tinha tudo para ser um bom filme Hollywoodiano, mas aconteceu no último final de semana, num zoológico norte-americano. E teve um desfecho trágico: para proteger a vida da criança, o gorila, representante de uma espécie em extinção, precisou ser morto.

Vamos ao fatos: de alguma forma, a criança se soltou dos pais e chegou muito próximo da jaula – uma espécie de “vala” arborizada – que abrigava o vultoso animal, de modo que terminou caindo. Os minutos que se seguiram, filmados por pessoas que presenciaram o incidente, mostram um misto de emoções e de impressões: em alguns momentos, o gorila parece estar cuidando do jovem, envolvendo-o em seus braços, zeloso e carinhoso como uma boa mãe. Em outros, o perigo é visível. O gorila arrasta a criança pelo chão com a força que só um forte animal de quase 200 kg teria. Nesse ínterim, a mãe da criança liga para a emergência. Com a equipe de socorro a postos, ainda sem saber exatamente qual atitude tomar, a situação já aparentava perigosa o suficiente para o menino de 3 anos para que o drama se prolongasse ainda mais. Numa fração de segundo, um movimento brusco qualquer do gorila poderia levar o jovem à morte. E eis que é tomada a decisão de, para proteger sua vida, sacrificar o animal.

A criança junto com o gorila

Foto: Repdrodução/Internet

Logo teve início o jogo de encontrar culpados para a situação. Muitos alegam que a responsabilidade por toda a situação cabe ao próprio zoológico, que, de alguma forma, permitiu que a criança caísse dentro do espaço do animal; o estabelecimento teria que ser mais cuidadoso em sua segurança e equipamentos de proteção para impedir o traspasse para as zonas de animais. Há quem culpe o sujeito que disparou contra o gorila, acusando-o de ter tomado uma decisão desproporcional ao perigo da situação. E há ainda uma corrente forte na internet que quer responsabilizar os pais da criança pela morte do gorila: ume petição online nesse sentido já conta com quase 300 mil assinaturas no momento em que escrevo esse texto.

Apesar do comportamento inicial aparentemente benigno do gorila, especialistas na espécie garantem que ele é um animal perigoso. A criança estava, de fato, sob grande perigo. Prova disso é que –pasmem- já ocorreram outras duas situações semelhantes a essa, em que uma criança cai na jaula de um gorila, em 1986 e em 1996. A diferença desses dois episódios para o do último fim de semana: naqueles a criança ficou inconsciente por conta da violência do bicho. E, de fato, quem assistiu ao vídeo do incidente (que está amplamente disponível online), percebe que o comportamento do animal se tornava realmente imprevisível, se tornando a situação tão delicada que, de um dado momento em diante, qualquer movimento inesperado poderia levar a criança a morte. Atirar não foi um ato de desespero, nem um ato deliberado: atirar foi um ato necessário uma vez que hierarquizado que a prioridade na situação seria, como me parece razoável, proteger a vida humana.

Tampouco me parece justo responsabilizar os pais pelo acidente. Crianças são imprevisíveis, e por mais atenção que lhes seja dada, algo sempre pode dar errado. Imagino ainda que fique implícito na cabeça dos pais que as divisórias entre os espaços dos animais e dos humanos no zoológico seja pensada de modo a impedir acidentes como esse. Aliás, com franqueza, os zoológicos continuam sendo seguros, e não é necessário se pensar em segurança adicional depois de casos como esse. Como comparação, só no ano de 2011, mais de 1200 pessoas ficaram feridas em acidentes em 400 parques de diversão ao redor do mundo, número que não se compara às 3 crianças a caírem em jaulas de gorilas nas últimas quatro décadas.

O que temos em mãos é uma situação altamente inusitada, raríssima de acontecer, fruto de um rol de improváveis desventuras em série. Não surge um culpado exclusivo, sequer me parece um caso de culpa compartilhada. O que houve foi uma grande e infeliz conjunção de fatores que culminou num desfecho trágico. Sim, a criança poderia nunca ter caído na jaula do gorila, e seria muito mais confortável não precisar escolher entre a vida de um menino inocente e indefeso de 3 anos e de um representante de uma espécie em extinção. Mas acidentes acontecem e decisões difíceis precisam ser tomadas. Diariamente, muitos desses gorilas são mortos em seu hábitat natural, por caçadores ilegais em busca de sua valiosa carne. Isso levou a espécie ao risco de extinção. Muitos desses animais foram mortos, ainda, pelo perigoso vírus do Ebola. De uma coisa não restam dúvidas: se há alguém a responsabilizar pela extinção dos gorilas, são os caçadores ilegais. E é contra eles que a opinião pública deveria estar voltada. Nem contra os pais do menino, nem contra o zoológico americano, nem contra o atirador, muito menos contra a criança. E fico triste em constatar que a única petição que encontrei na internet contra a caça ilegal da espécie conta com apenas 854 apoiadores. 300 mil continuam olhando para o lugar errado.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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