Água, fogo e chumbo: Em três atos, a falência humana do Rio de Janeiro

No Morro do Vidigal, algumas casas foram atingidas pelo deslizamento de encosta.

Texto: Marcelo David Macedo

A água é a substância mais importante do planeta, pois cobre a maioria de sua superfície e compõe grande parte do organismo de seres vivos. Sem ela não vivemos, mas através dela morremos, sobretudo em cidades abandonadas pelos governantes em que votamos. Na última quarta-feira (6), um temporal atingiu a cidade do Rio de Janeiro, alagando ruas, derrubando galhos e árvores, demolindo casas e, pior, causando a morte de seis pessoas. Os lugares mais atingidos foram as favelas da Rocinha e Vidigal e bairros populares da zona oeste da cidade.

Quando o dia amanheceu na Rocinha, o rastro de destruição era assustador, revelando um acúmulo de lixo inaceitável para o espaço público de uma cidade que é a décima maior do mundo. Desde então, um mutirão de moradores está em ação para desobstruir bueiros, ruas e vielas, bem como para auxiliar moradores que tenham perdido móveis e até mesmo suas casas – na favela, há pelo menos uma morte confirmada por soterramento. Há relatos de que esse mesmo mutirão também busca pessoas desaparecidas por conta da enxurrada que desceu morro abaixo e de deslizamentos. No Vidigal, favela vizinha à Rocinha, o cenário de destruição que já é grande pode ficar ainda pior, pois duas grandes pedras que ficam no alto do morro correm o risco de deslizar, passando por cima de dezenas de casas e de moradores. Tudo isso só existe porque, em uma favela, o Estado não entra para cumprir esse papel – porque só vê a favela como alvo policial, ignorando todo a importância e o potencial que espaços como esses têm.

FOTO: O lixo e a lama tomam as ruas da Rocinha. (Guilherme Pinto / Agência O Globo)

Entre outras propriedades, água apaga fogo – que é a mistura de gases em altas temperaturas que sempre despertou a curiosidade humana. Através da História, o fogo sempre foi uma das grandes molas de apoio para o desenvolvimento da civilização, também sendo responsável por grandes dores a partir da destruição de coisas que nos são caras. Nesta sexta-feira (8), um incêndio atingiu o Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, em Vargem Grande, zona oeste do Rio, matando jogadores da base do clube – as crianças tinham entre 14 e 16 anos de idade.

É insuportável pensar que crianças em busca do sonho de jogar bola tenham morrido queimadas, que famílias que confiaram seus meninos ao clube os recebam de volta em sacos pretos e que muitos desses meninos morreram em busca de um futuro melhor para eles e suas famílias que, num país racista como o nosso, nasceram com o destino traçado rumo a pobreza até o fim dos dias. Esses meninos se negaram a aceitar isso: levaram o sonho até o fim, por eles e pelos seus.

FOTO: Os meninos do Flamengo, entre eles alguns que morreram no incêndio desta sexta-feira (8), comemoram o título da Nike Premier Vip, conquistado em abril de 2018. Sorrindo, como sempre devem ser lembrados. (Foto: Alê Cabral/Clube de Regatas do Flamengo)

O mesmo fogo que tirou a vida dessas crianças também é capaz de, a altas temperaturas, distorcer o chumbo, um metal tóxico e pesado que, entre outras coisas, é o material com o qual são fabricadas armas de fogo e munições. Não existe uma aplicação para as armas que não seja matar – e que ninguém se engane em relação a isso, pois se armas produzissem segurança o Brasil, com 650 mil armas em circulação, segundo levantamento de 2017 da Polícia Federal (fora as ilegais que, por exemplo, chegam às favelas “sem que ninguém perceba”), seria o país mais seguro do mundo. Você se sente seguro?

Os moradores dos morros do Fallet e do Fogueteiro, em Santa Teresa, região central do Rio, mal dormiram essa noite em meio a um intenso tiroteio que durou boa parte da madrugada e da manhã desta sexta-feira (8). Treze pessoas morreram, dez delas em uma mesma casa; moradores relatam que policiais militares entraram nesta residência e, mesmo após terem rendido as pessoas lá dentro, as executaram. Após isso, desceram com os corpos em picapes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), grupo de elite da Polícia Militar do RJ, desmontando a cena do crime para que possíveis abusos não possam ser investigados através de uma possível perícia no local, em mais uma violação de direitos básicos, tão negados a moradores de espaços populares.

FOTO: Policial militar aponta fuzil para morador da favela durante operação. (Foto: Marcio Mercante/ O Dia)

Tudo isso, a enchente na cidade, o incêndio no Ninho e a chacina no Fallet/Fogueteiro, ocorreu em três dias. Quem pensou em declarar luto hoje se deu conta de que há dois dias, por exemplo, a cidade está de luto. As tragédias se repetem: Brumadinho, Manguinhos e a maior de todas, em Brasília. Ao todo, vinte e nove pessoas morreram em 36 horas, nos três atos que, às suas maneiras, definem o que virou o Rio de Janeiro: uma cidade abandonada, destruída, violenta, escura e entregue a grupos paralelos que ocupam espaços onde o Estado deveria estar. O futuro não reserva à cidade algo diferente – pelo contrário, a tendência é que piore. A nós, daqui, cabe resistir, como sempre e cada vez mais, além de desejar toda a luz e a força do mundo para todas as famílias e as pessoas afetadas pelos horrores vividos pela cidade desespero, ex-maravilhosa, nos últimos dias.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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