Não é novidade para ninguém que os ônibus fazem parte do cotidiano de todo o favelado. O veículo que começou a rodar nas ruas em 1908 fazendo o trajeto Praça Mauá x Passeio Público possibilitou que outras linhas fossem criadas em todos os lugares da cidade. Hoje em dia existem diversas linhas que atravessam as favelas e da zona norte a zona sul tem motoristas que todos os dias enfrentam problemas, situações engraçadas, desafios e vivem sua rotina naquele mesmo trajeto e comunidade.
De todas as linhas que passam pelo Complexo do Alemão, a 908 (Bonsucesso X Guadalupe) e a 628 (Penha X Nova América) são as mais conhecidas e que juntas somam cerca de 80 anos rodando e construindo memórias não apenas nos motoristas, mas também nos passageiros.
Foram entrevistados cerca de 10 profissionais para essa matéria com as mais diferentes rotinas e experiências, que, por segurança, pediram que não fossem citados diretamente. E tanto os mais velhos que tem 20 e 15 anos quanto os mais novos que entraram na profissão a 2 semanas, todos eles relataram que, no decorrer do dia, acontecem adversidades que estressam. Mas em um tom unânime a tranquilidade da rota prevaleceu.
Trabalho há 20 anos na mesma linha, e mesmo sendo morador do Alemão, em um todo é bem tranquilo.
Mesmo com certa calmaria nas ruas, ao perguntarmos sobre a rotina e o emocional desses profissionais, eles nos narram diversos episódios de estresse por conta de invasões e de depredações no veículo. “Eu sou calmo de nascença, mas tem alguns motoristas que saem muito estressados”, “Já fui pra casa assim (mostrou a mão tremendo) de estresse.” “(…) depois de todos esses anos, eu tive que começar a fazer vista grossa para muita coisa, senão eu ficaria doente.” De acordo com eles, a causa de todo esse problema são as invasões, que ocorrem quando alguém quer forçar para entrar no transporte de graça.
Além disso, os mais velhos citaram o grande desafio que é fazer 3 funções em uma só: motorista, trocador e fiscal. O quão grande é a responsabilidade de dirigir não só pela vida dele mas de todos os passageiros, e também estar em alerta sempre para situações desagradáveis não acontecerem, mas que precisam disso para poder viver. “(…) precisamos trabalhar né, a gente se adapta, o brasileiro sabe se adaptar.” Ou seja o acúmulo de cargos, somado com o estresse do trânsito podem gerar muitos problemas, por isso que a maioria dos entrevistados disseram que não se importam tanto com as situações pequenas e preferem só fazer o trabalho deles, dirigir e trocar dinheiro, já que as empresas não cobram ou descontam do salário do motorista pelas invasões. E as interpretações deles são diferentes sobre o que podem fazer, como nos foi dito. “Quando eu chego no ponto final, abro as duas portas e entra pelo lado que quiser, quem tiver educação e consciência vai pagar a passagem.” “Me estresso com as invasões porque se for educado e me pedir, eu dou uma carona, não precisa forçar pra entrar.” “Mesmo que peça pra dar uma carona, eu não posso dar, tem que pagar passagem e se invadir eu vou colocar pra fora”, disse outro. E sobre ser trocador, o motorista, que também é morador do alemão e que trabalha na linha há 20 anos, nos relatou que hoje em dia o que facilita é o uso de cartão de passagem. “Tem dia que a gente volta com 30 reais em dinheiro e o resto é no cartão mesmo.”
Mas nem só de estresse e obstáculos vive o profissional. Trabalhar diretamente com o público também rende histórias bem inusitadas, desde as mais conhecidas como passageiro que entra com máquina de lavar, vaso sanitário até aquele que já quis entrar com um cavalo. “Tem coisas mais antigas, gente que já tentou até subir cavalo no ônibus lá no Alemão. Era um filhote ainda mas não dava né?! bicicleta, moto, coisas que temos que conviver porque faz parte”, contou outro motorista. Ou alguém que quis entrar com um colchão enorme, não passou e ainda brigou com o profissional.
E essas experiências não são exclusivamente engraçadas, no dia a dia ocorrem muitas situações que marcam e deixam registrado na memória do motorista o que aconteceu. Como por exemplo crianças que divertem, a solidariedade com os comerciantes que vendem suas mercadorias no transporte ou até mesmo conversar com uma criança autista, para que a mãe pudesse pagar e organizar suas coisas para seguir viagem. Essa última história foi contada por um dos motoristas que entrevistamos.
Perguntamos como é a relação com os comerciantes e todos eles disseram que tanto com os ambulantes como com os comércios que estão aos redores dos pontos finais, a relação é bem tranquila e de parceria. “Eles estão trabalhando assim como eu, então eu não mexo com eles e ainda me ajudam quando preciso de troco”. “O comércio é bem de boa, só falta investimento né, mas investimento como? Quem tem pra investir não investe em lugares que não dão retorno rápido, aqui ao redor do ponto final tem esses comércios bonitinhos e limpinhos, mas não tem cliente.”
Percebe-se que a profissão de motorista rodoviário não é isolada, e que também não trabalha sozinha. Eles estão a todo o tempo em conexão direta com os comerciantes, de dentro e de fora do veículo, com outros profissionais que trabalham na empresa, com os fiscais e, mais importante de tudo, com as pessoas que chegam todos os dias e todas as horas para poder passar na catraca do ônibus.
Cada ser humano ao cumprimentar quem está dirigindo, deixa com ele um pedaço da história do seu dia. Porque afinal de contas é no ônibus que eles são levados a algum lugar e trazidos dele, que podem descansar ou dependendo da rotina almoçar, ler ou até trabalhar. Ou seja, o motorista além de dirigir o veículo também dirige as experiências de cada passageiro, zelando pela sua vida, segurança e possibilitando que no próximo dia aquela pessoa possa escrever uma nova história que será contada por ele em breve.