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Quem cuida de quem cuida? A dor da perda e as cicatrizes incuráveis

Mães, que perderam seus filhos de forma violenta, falam sobre a dor do luto, saúde mental e de como vivem com a ausência de quem mais amavam
Nívia Raposo, mãe de Rodrigo Tavares Raposo e ativista dos direitos humanos Foto: Marlon Soares

A relação que a mulher cria com o filho quando se torna mãe é quase mágica. E mesmo com todos os desafios e obstáculos, essa relação é alicerçada em amor, afeto, dedicação e tempo. Pesquisas científicas apontam que esses vínculos são resultados de exposições repetitivas de hormônios produzidos pelo corpo na gravidez, como por exemplo a oxitocina, popularmente conhecido como o hormônio do amor, que é liberada pela amamentação e resulta em efeitos psicológicos de estimulo a sociabilidade, diminuição da ansiedade e do estresse, estreitamento de ligações sentimentais e entre outras. O corpo materno é biologicamente feito para criar laços e conexões com seus filhos e desenvolvê-los durante a vida. Mas o que acontece com o psicológico e emocional de uma mãe quando, ao piscar de olhos, perde seu filho? De acordo com o Instituto Fogo Cruzado,em abril deste ano foram contabilizados 201 tiroteios, onde 65 deles se deram em ações e operações policiais, somando 59 mortes no mês, ou seja, quase duas famílias por dia foram destruídas e vítimas do Estado. E que ainda estão tentando equilibrar o emocional, pois se o corpo está pronto para construir vínculos afetivos e sentimentais, ele, então, não está preparado para lidar com o vazio adquirido pela perda tão repentina e muitas vezes violenta de um filho.

Em uma conversa com Nívia Raposo, mãe de Rodrigo Tavares Raposo, assassinado praticamente em frente à sua casa por um miliciano em 2015, ela disse: “Cortaram meu filho de mim…. A minha impressão era de que eu estava fazendo tudo certinho para poder ter minha família estruturada, e perdi meu filho dessa maneira”. A mãe também relata a sensação que teve ao ver o corpo de seu filho. “Me senti numa impotência, quando cheguei perto do corpo dele, pedi desculpas.” Nivia também contou que aprendeu a estar na luta do movimentos de familiares de vítimas por conta de seu ódio, “Nos primeiros dias eu estava com muito ódio, fui pra luta pra ressignificar esse sentimento. Eu vou na força da raiva.” Se torna notório que o psicológico não só de Nívia, como de todas as mães vítimas se rompem, demoram para cicatrizar e que elas precisam entender formas de dissipar essa dor.

O luto pode se apresentar de diversas formas, como disse Vanessa Félix, mãe de Ágatha Félix, de 8 anos, assassinada com um tiro de fuzil enquanto estava em uma Kombi com a mãe na Fazendinha, CPX do Alemão. “No meu pensar não existe o pós luto. O luto eu vou viver pra sempre porque ela não está mais aqui, eu que vou tentar conviver com a ausência que ela me faz”. A questão em torno do luto envolve muitos aspectos, e pode até facilitar o desenvolvimento de doenças físicas e psicológicas. Um exemplo disso é que para essa matéria foram entrevistadas cinco mães e as cinco, Nívia, Vanessa, Ana Paula, Jackelline e a vereadora Mônica Cunha precisaram ou ainda precisam de tratamento terapêutico e até de medicamentos, além de todas terem relatado a dificuldade de dormir. 

O processo de voltar a se enxergar é demorado, sensível e individual. Cada família e pessoa se articula da maneira que consegue e que pode, algumas encontram força na luta pelos direitos humanos, outras na sua fé e as demais em atividades cotidianas. Todos os caminhos que o luto pela perda violenta do seu filho leva é digno e importante, pois essas rotas são aquelas que dão a nova visão de que elas possam renegar o sistema e se manterem vivas. 

Ana Paula Gomes, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, assassinado em Maio de 2014 na favela de Manguinhos, ativista dos direitos humanos e integrante do movimento Mães de Manguinhos, expôs sobre o desafio de se manter viva. “(…) pra lutar a gente precisa estar viva e a gente tem visto o adoecimento de muitas mães. A gente tem visto que muitas mães têm tombado no meio do caminho. Porque não é uma luta fácil, é uma luta muito difícil, muito dolorosa e muito árdua”.

Ana Paula Gomes, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, cria de Manguinhos, ativista dos direitos humanos e integrante das Mães de Manguinhos
Foto: Marlon Soares / Voz das Comunidades

Mas nem sempre esses processos são rápidos, na realidade, demoram anos, é como se a ferida estivesse aberta para todas as famílias e aos poucos vão cicatrizando enquanto ainda estão doendo e sendo mexidas. 

No mês de junho deste ano, fez 3 anos do assassinato de Kathlen Romeu e seu bebê, no complexo do Lins. Em entrevista com sua mãe, Jacklline Lopes foi perguntada sobre todo o processo do luto, da revolta à morte e ela respondeu que sempre é difícil mas tem momentos que são mais. “Não durmo direito desde 2021. Faço terapia e tomo remédio pra conseguir dormir, eu tenho uma rede de apoio que sempre está comigo, mas sinto que eles deixam os sentimentos deles de lado pra poder cuidar de mim. Eu vejo que meu marido está dilacerado mas faz o que precisa fazer porque eu não consigo.”

Jacklline Lopes e seu marido, na audiência da morte de sua filha Kathlen Romeu, em maio de 2024
Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Jacklline também falou sobre a impunição e os efeitos que isso traz a ela. “Eu assisti ao vídeo dos policiais dizendo que sairiam impunes. É uma certeza que eles têm de que podem tirar minha filha de mim e que nada vai acontecer.”, “A cada audiência é como se eu voltasse a tudo o que aconteceu e esse mês de junho faz três anos. Tem, inclusive, a exumação do corpo da minha filha… Preciso viver um dia de cada vez e sem pensar muito nos próximos passos.”

Essa impunidade traz efeitos complicadíssimos para aqueles que estão na linha da frente, mães, pais e familiares. Como por exemplo o caso do João Pedro Mattos Pinto, assassinado no complexo do Salgueiro em 2020, onde os policiais envolvidos foram absolvidos pela juíza, sem a chance de júri popular. Ao conversarmos com Rafaela Coutinho Matos, mãe de João Pedro, ela nos disse sobre a dificuldade que é viver após a absolvição dos envolvidos. “É horrível, eu fico melhor quando ocupo a minha cabeça e é com o trabalho, cuido das crianças e a força que tive que ter por conta da minha filha.”. Ela também nos disse que geralmente perto do horário do acontecido ela se sente mal, “(…) naquele dia eu tava assistindo televisão a tarde, foi umas 15:00, e hoje em dia se eu não tiver fazendo a mesma coisa, parece que eu volto para o dia do ocorrido.”.

Ocupar a cabeça, trabalhar e fazer outras atividades não dizem respeito apenas do bem estar mas também da sensação de que o mundo não para e de que a vida continua, mesmo com dor, assim como a vereadora Mônica Cunha, que perdeu seu filho Rafael da Silva Cunha, de 20 anos, em 2006, nos contou. “Para nós, mães, não existe tempo para reflexão. O mundo continuou e eu tinha contas para pagar…”, e continuou o seu relato, “Eu tinha que chorar escondida, porque meu filho mais novo queria vingança contra os meninos do movimento que deram a arma para o meu filho. Ele falava que sabia quem tinha sido e onde ficavam.” Mônica Cunha também disse como foi sua trajetória até chegar onde está hoje, entre crises de depressão severas, onde o auxílio da família era fundamental para ações do cotidiano, até a mudança de estado com o objetivo de se curar. Ela continuou falando sobre sua volta pro Rio e como se entendeu parte dessa luta. “Eu iniciei pelo DEGASE, e comecei a me entender enquanto mulher negra quando passei a reconhecer os meus iguais. E então eu estudei, sou técnica em educação antirracista, entrei na ONG CRIOULA e comecei também a assessorar alguns parlamentares”. 

Se falar sobre a saúde mental dessas mães e familiares é uma utopia, com Mônica Cunha na Câmara Municipal não é. Em parceria com a, também, vereadora Luciana Novaes, criaram o projeto de lei de número 1739/23, chamado Programa de atenção psicossocial às vítimas de violência armada, que é pautado pela garantia de acesso à saúde mental e física, equidade social e garantia de direitos humanos. E mesmo sofrendo problemas para a aprovação do projeto, como relatou Mônica, “Sofremos retaliações porque não querem que culpemos o Estado, mas no fundo de tudo são eles também que temos que responsabilizar”, continuou a vereadora, “(…) a raiva deles é que não conseguem mais nos confundir. Estamos de olho aberto e a juventude preta vem com tudo, com o pé na porta.”, as parlamentares conquistaram a aprovação no dia 6 de Junho de 2024, em 2 discussão. 

Monica Cunha (Centro) é vereadora na cidade do Rio de Janeiro
Foto: Caio Oliveira / Reprodução

Ao perguntarmos sobre a responsabilidade de ser uma parlamentar que não só luta pelos direitos dos familiares de vítima, mas também aprovou uma lei que acompanhe esses familiares e também sobre o que se pode esperar desse projeto, ela nos respondeu dizendo.  “O programa municipal é para tratar, curar e retratar as vítimas, e também me encontro nesse meio, porque tratar e auxiliar elas é me tratar também.” 

No meio de tanta dor e falta de esperança, é possível enxergar a luz no meio de quem luta, de quem tá na frente da batalha e pode compartilhar suas experiências com quem já passou por situações iguais. As histórias e depoimentos de Nívia, Vanessa, Ana Paula, Jacklline e Mônica Cunha são aquelas que oferecem lugares de conforto e acolhimento para quem passa por violências estatais e de policiais, com a perda de seus filhos. 

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Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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