O conceito de periferia é algo que tem sido discutido por acadêmicos há alguns anos. Não há uma coesão na resolução do que de fato significa, mas é de extrema importância entendermos que, para além da geografia, há corpos que carregam consigo todas as marginalidades – no bom sentido da palavra – que a sociedade tenta renegar.
O mês de janeiro é um mês simbólico para a luta da comunidade trans e travesti no Brasil, tendo o dia 29 como um dia para demarcarmos a nossa visibilidade em cenários que trabalham para que nossos corpos não sejam representados. Ser uma pessoa LGBTQIAPN+ dentro de um espaço de favela requer uma coragem redobrada se comprarmos a performance de gênero que pode ser celebrada nas zonas “nobres” da cidade. Foi pensando nisso que escolhemos Lua Brainer, 27 anos, mulher trans, uma artista multifacetada e articuladora cultural para contar um pouco da sua história dentro da favela e sobre como ela imagina o futuro dentro desses territórios.
“Eu iniciei a construção do que eu sou hoje ainda em 2017. Quando eu decidi iniciar o meu processo de transição, senti que a comunidade do Pinheiro, de onde eu sou, começou a me olhar de outra maneira. Eu estava descobrindo essa identidade que sou hoje e acessando o ensino superior, no curso de Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).” conta. Lua representa uma liderança que está comprometida com a manutenção de uma segurança para corpos trans e travestis dentro da favela e tem visto na cena de ballroom uma esperança para resgatar a memória e legado de outras que estiveram aqui anteriormente, além de tirar um pouco do estigma que é direcionado para esses corpos. “A minha luta tem sido voltada a trabalhar cada vez mais para a propagação da cultura ballroom dentro das favelas. Hoje entendo que é através disso que conseguiremos alcançar novos ares, além de consolidar cada vez mais a nossa identidade e arte para além daquilo que as pessoas esperam dos nossos corpos” relata Lua.
São olhares demorados e acompanhados quase que sempre de julgamentos motivados pela falta de letramento e de políticas de um Estado que segue engatinhando nessa luta em prol de um maior amparo para esses corpos; que acabam sendo assistidos por organizações e coletivos que nascem da necessidade e não de uma política efetiva e atenta.
A violência que faz parte do cotidiano de mulheres trans e travestis é uma realidade expressiva e engana-se que o entendimento de família segue sendo o mesmo para essa população, onde é muito comum de se ouvir relatos sobre uma relação conflituosa entre pais e filhas com um discurso transfóbico validado pela igreja.
“Eu não precisei ir muito longe para receber a minha primeira memória de transfobia. Lembro que quando contei aos meus familiares, fui extremamente criticada e colocada em um lugar de muitas violências. Um primo meu, por exemplo, chegou a me ameaçar de morte por não querer lidar com a minha presença dentro dos espaços. Isso é muito violento, principalmente quando você espera receber uma acolhida de seus pais, parentes e não recebe” desabafa.
Segundo o relatório anual de 2022 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil segue sendo pelo 14º consecutivo o país que mais matou mulheres trans e travestis no mundo. Importante sinalizarmos que o material leva em consideração os casos que possuem registros, o que nem sempre acontece.
Gilmara Cunha é uma figura que simboliza a resistência e afeto dentro do Complexo da Maré. É a partir dessa mulher que nasceu o Conexão G, grupo que tem como luta o cuidado e suporte para a população LGBT dentro da favela, que hoje segue sendo apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos. Conversamos com a Quitta Pinheiro, 27 anos, mulher trans, fotógrafa que atua no Conexão para entender um pouco mais do trabalho do grupo.
“O Conexão acaba sendo o primeiro lugar de afeto para muitos desses corpos que compõem essa diversidade dentro das favelas. Além de trabalharmos na promoção de mais educação e capacitação para essas meninas, também dialogamos em nosso cotidiano com a favela. Queremos, acima de tudo, promover um intercâmbio entre nossos corpos, para assim, atingirmos um lugar minimamente saudável e seguro.” conta Quitta.
O futuro desses corpos que vivenciam a periferia de múltiplas formas tem se tornado cada vez mais pauta e motivação de resistência. Há um surgimento de novas pessoas e lideranças que parecem engajadas e munidas de muita força para resistir e ocupar novos horizontes. Ainda bem.