Por: Thamyra Thâmara para PerifaConnection, na Folha de S.Paulo
A morte de Moïse Kabagambe é mais uma daquelas tragédias que regurgitam em nossa cara a fragilidade da democracia brasileira.
“Nós viemos para o Brasil porque aqui era o país do preto, do moreninho, de todo mundo…” Essa foi a resposta de Yvana Lay quando perguntada pela jornalista e apresentadora Fátima Bernardes, o porquê da sua família ter escolhido refúgio político no Brasil.
Yvana Lay é mãe de Moïse Kabagambe, jovem congolês de 24 anos, assassinado na segunda-feira (24) no quiosque Tropicália na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Moïse foi espancado friamente até a morte por cinco homens, entre eles o gerente do estabelecimento, após ter cobrado dois dias de pagamento atrasado. Uma diária de trabalho que girava em torno de R$100 a R$200 foi o preço dado a vida do jovem congolês. Imaginem só?
Nesse momento talvez pudéssemos dividir o Brasil entre aqueles que se chocaram com a notícia de um lado, os que viraram a página “afinal é mais uma tragédia” e ainda o grupo dos que presenciaram a agressão seguida de morte e continuaram seguindo suas vidas como se nada tivesse acontecido.
A morte de Moïse Kabagambe é mais uma daquelas tragédias que regurgitam em nossa cara a fragilidade da democracia brasileira. É mais um daqueles episódios que nos recordam que a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra. E que negros e negras não são considerados humanos nesse país.
Seu corpo, achado amarrado em uma escada, denuncia que sua morte não pode ser apenas justificada por motivos trabalhistas ou xenofóbicos. Ela está ligada diretamente às raízes profundas do racismo à brasileira.
O assassinato de Moïse Kabagambe ainda nos mostra que o ódio a africanos não é um caso isolado. Em 2007, o alojamento de estudantes africanos na Universidade Federal de Brasília (UNB) foi incendiado como forma de repúdio à presença dos mesmos na universidade.
Em 2011, a angolana Zulmira de Souza Borges, estudante de engenharia, foi assassinada na região central de São Paulo após ataques racistas. Ainda em 2011, Toni Bernardo da Silva, natural de Guiné Bissau, e estudante de Letras na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foi assassinado por dois policiais enquanto pedia informações em uma pizzaria. Entre tantos outros casos que não tomaram visibilidade midiática.
Diferente desses casos, me recordo que das muitas vezes que estive no continente africano, em diferentes países, sempre fui muito bem recebida, simplesmente pelo fato de ser brasileira. E mesmo quando eu chegava a comentar sobre o racismo no Brasil, sentia que as pessoas não conseguiam entender. Afinal, não é o país do encontro entre as três raças?
Em uma das vezes que estive na África do Sul, por exemplo, eu e um amigo sul-africano ficamos conversando horas sobre a questão racial no mundo. Enquanto ele contava sobre os inúmeros casos de violência durante o apartheid no país eu falava sobre o que acontecia no Brasil.
Lembro um determinado momento ele dizer: “mas o racismo daqui é muito mais pesado do que o racismo daí”. Ele não não tinha ideia que o Brasil de todas as cores matava um jovem negro a cada 23 minutos.
A crença da mãe de Moïse, “no paraíso brasileiro de todas as cores”, não apenas fez com que sua família viesse para o Brasil em busca de recomeço, paz e dignidade como também faz com que dezenas de outros africanos continuem chegando ao país numa imigração contemporânea em busca dos mesmo ideais.
O sonho por um país acolhedor, faz com que muitos, para além do refúgio, venham com visto de trabalho e até como estudantes nas melhores universidades públicas do nosso país. Muitos desses jovens, infelizmente, se deparam com o racismo pela primeira vez em suas vidas, fora de seus países de origem —pisando em solo brasileiro.
Um jovem africano quando chega ao Brasil, independentemente da sua classe social, precisa aprender logo cedo a lidar com o olhar de escárnio, com as perguntas “curiosas” sobre a África, com a senhora que atravessa a pista ou esconde a bolsa na rua.
Em muitos casos, com a possibilidade de ser “confundido” com um bandido enquanto corre em via pública, com uma abordagem policial sem motivo, em ser seguido pelo segurança numa loja, a ser considerado inferior numa entrevista de trabalho e a ter que justificar cotidianamente sua presença nos lugares. Uma cartilha de sobrevivência que o negro brasileiro aprende desde pequenininho, na marra.
Chegar ao Brasil é descobrir que a democracia racial é um mito. E que a ideia de uma identidade mestiça é uma farsa. Farsa essa que deu início no século 19 e ainda hoje reverbera junto com a cisma por embranquecer não apenas esteticamente, mas historicamente.
Somos todos mestiços! Somos todos pardos! É apenas um eufemismo para a real verdade do brasileiro médio: eles não gostam de preto e negam suas raízes africanas e indígenas.
Thamyra Thâmara
Jornalista, roteirista, produtora de narrativas 360•, fundadora do GatoMÍDIA e doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento. Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo