Neste texto eu vou trazer para você ideias que podem ajudar a evitar o aumento de desigualdades educacionais nesse período de quarentena aqui no Brasil. Não é uma receita porque não existe receita em educação, mas são ideias baseadas em evidências científicas no campo educacional. Quero conversar com professores e famílias de periferias, principalmente. Inclusive, se você for professor e quiser ir direto para as dicas, pode pular para o ítem “1”. Se você é mãe ou pai de aluno, pode ir direto para o item “2”. Mas sugiro que leia todo o texto.
Mais de um bilhão de estudantes são afetados no mundo todo devido ao fechamento das escolas por conta da pandemia de Covid-19. Exatamente isso que você leu: mais de um bilhão. Para ser mais preciso, 1,213,390,181 estudantes são afetados com o fechamento das escolas no mundo, de acordo com dados do dia 17 de maio de 2020 da Unesco, que vem acompanhando diariamente o número de estudantes afetados pelo isolamento social e suspensão das aulas. Esse número corresponde há quase 70% do total de estudantes matriculados nas escolas em todo o planeta. Só no Brasil, são quase 53 milhões de estudantes afetados pela suspensão das aulas.
No Rio de Janeiro, a rede municipal da cidade carioca tem 626 mil estudantes, a rede estadual tem 700 mil. Todos esses estudantes estão sem aula pelo menos desde 16 de março de 2020 e este artigo é escrito em maio.
Uma das maiores preocupações de todos os envolvidos com Educação nesse momento é a produção e reprodução de grandes desigualdades educacionais e sociais em todo o mundo devido à suspensão das aulas e outros impactos da pandemia, como os prejuízos na economia dos países.
As desigualdades sociais e educacionais fortalecidas com o fechamento das escolas possuem diversas dimensões, que passam pelo acesso à alimentação, relações entre famílias e estudantes nesse período em casa, acesso a serviços educacionais na modalidade à distância, dentre outros processos. A Unesco lista alguns fenômenos incluídos nas desvantagens produzidas para indivíduos mais vulneráveis socialmente (sobretudo pessoas mais pobres) devido ao fechamento das escolas: interrupção nos estudos, problemas de nutrição, dificuldade dos pais para dar suporte à educação escolar em casa, problemas comportamentais quando crianças precisam ficar em casa sozinhas para pais trabalharem, impactos nos sistemas de saúde devido à alterações nas dinâmicas de vida de boa parte de seus profissionais, evasão escolar, dentre outros. A instituição também menciona que a ausência de aulas presenciais também gera impacto na saúde mental dos profissionais da educação, por meio de aumento no estresse de professores com a incerteza do tempo de suspensão das aulas (o que interfere diretamente no planejamento docente) e as transições para plataformas digitais podem ser frustrantes, ainda mais associado às dificuldades de acesso de muitos estudantes, sobretudo das redes públicas.
Para aprofundar a conversa, você sabia que há evidências científicas de que longas interrupções escolares afetam mais estudantes mais pobres do que estudantes de maior nível socioeconômico? Pois é. Faltam estudos no Brasil mas pesquisas feitas nos Estados Unidos mostram que após as férias (que eles chamam de “férias de verão”, equivalente às nossas férias de janeiro aqui) os desempenhos de estudantes de menor nível socioeconômico reduzem. Já os alunos de maior nível socioeconômico acabam experimentando nenhuma influência das férias em seus desempenhos ou, até mesmo, o efeito inverso: em alguns casos, eles aumentam seus desempenhos após as férias de verão. Isso se explica de algumas maneiras mas elas podem se enquadrar em dois mecanismos principais: a ação da família em casa e a ação da escola. No que se refere à família, entende-se que famílias mais pobres tendem a oferecer práticas, nas férias, mais distantes da vida escolar, que é o inverso do que acontece com famílias de maior nível socioeconômico, já que as práticas oferecidas nas férias tendem a se aproximar da vida escolar (manutenção e fortalecimento de hábitos de leitura e estudo em casa, dentre outras coisas que não dependem de dinheiro apenas e outras em que a renda ajuda). No que se refere à escola, há influência de como a instituição favorece ou não a apreensão do conjunto de conhecimentos e práticas escolares que se propõe a transmitir, como ela consegue reduzir ou não os conhecidos efeitos da origem social nos resultados escolares. Importante dizer que há casos em que as escolas variam muito entre si dentro de um mesmo sistema de ensino, podendo ser desigual a distribuição de oportunidades educacionais dentro de uma mesma rede de escolas (e numa mesma escola) e o acesso às oportunidades também varia dentro de uma mesma classe social; por exemplo, dentro de um mesmo bairro e/ou em uma mesma favela, é possível ver diferentes formas de construir relações entre famílias e escolas. E isso tudo pode gerar desigualdades entre indivíduos de níveis socioeconômicos parecidos, não somente entre estudantes de níveis socioeconômicos muito distintos.
Nesse sentido, é necessário construir planejamentos e ações a nível de secretarias de educação (por meio de suas gestões), a nível de escolas (por meio de gestores e professores) e a nível de turmas (por meio, sobretudo, de seus professores) que prevejam os impactos graves a serem causados nos alunos mais pobres após o isolamento social devido à pandemia de Covid-19 e que evitem produção de desvantagens nas ações. Dentre essas ações, manter o vínculo com os estudantes ganha papel especial. Só que comunicação à distância com estudantes no Brasil vira problema quando a gente vê que 1 em cada 4 pessoas não possui acesso à internet em casa. Sem falar em outros aspectos como analfabetismo absoluto (ausência da capacidade de leitura e escrita), analfabetismo funcional (dificuldades de interpretação do que se lê) e digital (dificuldade na compreensão de ferramentas digitais).
Desde o início da suspensão das aulas, as redes escolares do Brasil inteiro cobraram do governo federal pronunciamentos e ações concretas para orientar os estados e municípios de como reduzir os efeitos negativos da quarentena por meio de estratégias que não produzissem desigualdades sobretudo por dificuldades no acesso dos estudantes aos recursos do ensino à distância, os que usam tecnologias online principalmente. Importante dizer que existem 200 dias letivos e 800 horas obrigatórias para cumprir em um ano letivo e a não redução dos 200 dias letivos e a falta de orientações do que fazer com a suspensão das aulas deixou muita gente preocupada (inclusive eu); isso porque, sem orientações legais, abre-se a possibilidade de considerar aulas à distância como dias letivos, substituindo os presenciais, o que é gravíssimo para as redes públicas considerando as dificuldades já apontadas aqui dos estudantes mais pobres de estudarem à distância.
Após cobranças dos poderes executivo e legislativo nos estados e municípios e respostas incompletas do governo federal, enfim, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou parecer no dia 28 de abril autorizando o uso de atividades não presenciais em todas as etapas da Educação Básica, da educação infantil ao ensino médio. No documento, o CNE diz que o ano letivo poderá ser cumprido em menos de 200 dias, assim como diz a medida provisória 934 do governo federal. A diferença é que o CNE autorizou que as 800 horas, que continuaram obrigatórias com a medida provisória, também pudessem ser cumpridas por atividades não presenciais, usando internet ou outros recursos. O CNE deixou a cargo dos estados e municípios adotarem ou não estratégias não-presenciais, podendo inclusive só retomar algum contato com os estudantes após o fim do isolamento social.
Já vimos que não realizar nenhuma ação escolar à distância pode gerar desigualdades educacionais devido aos impactos de longos períodos de interrupção das aulas para estudantes mais pobres, mas, como também vimos, usar atividades não-presenciais também pode gerar (e ampliar) desigualdades dependendo de como isso for feito. Então a pergunta que fica para os professores e escolas que decidirem adotar recursos à distância é: como utilizar esses recursos sem, no entanto, criar sérias desvantagens educacionais?
Não existe resposta exata para essa pergunta, mas uma palavra que precisa entrar em qualquer ensaio de resposta é: complementar. As estratégias à distância devem ser complementares e não de substituição, sobretudo nas redes públicas. Isso significa que o caráter legalmente presencial da Educação Básica brasileira precisa ser priorizado mesmo em isolamento social e mesmo adotando atividades não-presenciais. Tudo que for adotado agora precisa ser retomado no retorno às aulas presenciais (principalmente estratégias diretamente ligadas à aprendizagem das competências e habilidades previstas nos currículos regionais e nacional), para garantir que todos os estudantes, sobretudo os mais vulneráveis, tenham acesso efetivo não só às estratégias utilizadas como também e, sobretudo, à aprendizagem. Direito à aprendizagem e igualdade de condições para acesso e permanência na escola são garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional.
- Pensando nos professores, escolas e redes
Professores já são pouco valorizados (sobretudo financeiramente), muito cobrados e pressionados diariamente no Brasil, sobretudo nas redes públicas. Então não quero aqui dizer o que fazer ou deixar de fazer. Vim só trazer ideias, sugestões possíveis de serem utilizadas na rede pública. A Unesco tem uma lista de recursos a serem utilizados nesse momento de quarentena (e fora dela), cabe cada professor avaliar se é interessante ou não para o seu trabalho e realizar as adaptações necessárias. Importante mapear socioeconomicamente as turmas. Eu faço isso utilizando questionários logo nas primeiras aulas. Isso orienta melhor momentos como o de agora, nesta pandemia, porque conhecemos melhor as realidades das famílias e dá mais certezas ao pensar em formas de intervir para a melhor aprendizagem. Abaixo vou listar alguns recursos bons para usar a distância na quarentena na rede pública, de forma complementar.
- Google Formulário. É uma ferramenta ótima para criação de atividades podendo inserir imagens e vídeos. Os alunos não precisam de login com e-mail e, ao responderem, o professor recebe os resultados na hora, inclusive com gráficos das respostas dadas e podendo criar planilhas no Google Planilhas com as respostas.
- Google Drive. É uma ferramenta, também do Google, que serve para inserir materiais: textos, vídeos, fotos (eu tiro foto das anotações que faço no quadro em cada aula e coloco num Google Drive criado para as turmas, por exemplo), etc. O estudante consegue acessar a pasta sem login com e-mail.
- Playlists no YouTube. É possível criar playlists de vídeos do YouTube de forma “não listada”, em que apenas quem você mandar o link da playlist tem acesso mesmo que os vídeos sejam públicos, o que permite organizar uma sequência de vídeos de acordo com o desejo e planejamento do professor; material no YouTube é que não falta, sobretudo no YouTube Edu.
- Vídeos ao vivo “não listados”. Dá pra fazer vídeo ao vivo no YouTube selecionando quem vai assistir e, ainda, o vídeo fica no ar se você quiser. Então basta iniciar a live e mandar para os alunos via grupos no Whatsapp ou em outros locais. Eles podem participar ao vivo via chat.
- Gravar tela do computador ou do celular. Esse recurso é ótimo para aulas mais expositivas, assim como as aulas ao vivo ou mesmo para explicar alguma atividade. Eu uso o Apowersoft no computador e tenho curtido. Tem versão dele para celular no Android e no iOS, sem falar que alguns celulares atuais já vêm com recurso de gravar tela. Tem como fazer uma apresentação no PowerPoint, no Canva ou mesmo no Google Apresentações e gravar usando microfone externo ou, ainda, gravar a tela usando microfone interno, em que só saem os sons do que você tiver apresentando enquanto grava a tela. Eu tenho postado vídeos que tenho gravado no meu YouTube como “não listados” e aí mando para os alunos quando preciso. Vários recursos virtuais podem ser usados enquanto a tela é gravada, inclusive animações em realidade aumentada em apps como Google Expedições e outros que seriam mais difíceis para os alunos acessarem pelos seus celulares em casa.
- Khan Academy. É uma plataforma que permite autonomia do estudante porque possui sequências didáticas por meio de apresentações, vídeos e quizzes, podendo o professor monitorar tudo em tempo real. Mas o ponto negativo é que, por já ter estratégias todas prontas, não dá muita autonomia do professor na elaboração de atividades que queira, da forma que queira.
Existem centenas de outras plataformas e recursos virtuais que eu poderia falar aqui (veja 80 ferramentas clicando aqui) mas muitas são melhor utilizadas presencialmente ou encontraria muito entrave no acesso de estudantes que acessam pelo celular, principalmente os aparelhos mais antigos. Esses que mencionei já geram alguns problemas de acesso em uma parte dos alunos que possuem pouca ou nenhuma internet para links externos (há planos para celular que não permitem acesso a mais nada além de redes sociais), por isso é fundamental adaptar o máximo de atividades possíveis convertendo formulários para pdf (só visualizar o formulário, colocar para imprimir com o Google Chrome e salvar em pdf), mandando por Whatsapp algum material inserido no Drive se possível e gravando áudios explicativos além (ou ao invés) de vídeos quando necessário, para que possam ser executados diretamente por Whatsapp. Importante escutar as demandas dos alunos para pensar no que fazer e lembrar: não dá para fazer tudo; é um momento anormal e a responsabilidade não pode recair totalmente sobre professores e escolas.
Não é exagero repetir que tudo isso precisa, na quarentena, caso for usado, ser estratégia de complementação. O ideal mesmo é oferecer todos os materiais equivalentes, sobretudo impressos, para estudantes sem acesso nenhum a internet ou aparelhos tecnológicos no retorno presencial (ou mesmo agora via secretarias de educação) e retomar os conteúdos curriculares trabalhados. Uma sugestão que recebi de uma professora foi formar grupos heterogêneos no retorno presencial para realizar as atividades (as mesmas passadas à distância ou outras equivalentes para não gerar disparidades educacionais a nível de conteúdo e metodologia de ensino); nesses grupos terão estudantes que foram mais ativos na realização e acompanhamento de tudo que foi usado à distância e alunos que tiveram menos acesso ou que fizeram menos atividades e acompanharam menos. Daí a importância de registrar tudo que for feito e sobretudo quem fez e quem não fez as atividades; eu uso planilhas (uma para cada turma) para organizar a realização das atividades dos alunos além de salvar as atividades no Google Drive. Esses grupos heterogêneos tendem a ser bons para estudantes que não conseguiram acompanhar as estratégias à distância, pode evitar processo de segregação dentro das turmas e também evita que as aulas e atividades fiquem tão repetitivas para quem já fez online (e daí evita que esses alunos fiquem desmotivados).
Fundamental que as escolas estabeleçam combinados institucionais para evitar as desigualdades intraescolares (dentro da própria escola). Algum grau (mesmo que pequeno) de padronização do que for decidido é importante; isso tem a ver com clima escolar, principalmente o clima escolar em seu sentido acadêmico, que inclui a forma que a escola e professores se organizam academicamente, fornecem oportunidades e dão feedbacks aos estudantes; pesquisas indicam que escolas com bom clima são capazes de reduzir desigualdades dentro da mesma instituição. Toda essa fala vale para as redes escolares que precisam estabelecer caminhos pedagógicos e orientações coletivas para as escolas de forma a evitar aumento das desigualdades entre escolas.
2. Pensando nas famílias de camadas populares, principalmente periferias e favelas
Se você é mãe, pai ou responsável, importante aumentar a parceria com a escola nesse momento. Importante seguir ações como:
- Organizar horários para estudo da criança ou jovem em casa. Pode ser pouco tempo por dia. Não é dizer para ficar horas estudando porque o momento é de se cuidar, as aulas estão suspensas exatamente por isso. Mas manter um pouco que seja o contato com os materiais escolares é fundamental para que ele retorne às aulas presenciais mais preparado.
- Fornecer todo o apoio emocional necessário. Estimular positivamente, elogiar a criança ou jovem, dizer o quanto se preocupa e buscar mostrar que você e seu filho estão juntos nesse momento é fundamental para que ele se sinta apoiado e tenha mais motivação para se cuidar e até mesmo estudar em casa.
- Verificar a realização das atividades. Ver se o filho está fazendo o que a escola e seus professores orientam (e cobrar para que faça) é muito importante para aumentar as chances que ele consiga avançar na aprendizagem. Também ensina habilidades socioemocionais importantes como responsabilidade e comprometimento. Mas importante: cobrança deve vir aliada do apoio e dos estímulos positivos, de preferência.
- Estimular hábitos de leitura na quarentena. O Brasil não vai muito bem nos índices de leitura há vários anos. Importante estimular hábitos de leitura de reportagens atuais, pequenos textos, quadrinhos, seja onde for: internet, jornal, revista. E estimular a escrita também pode ser bom para desenvolver argumentação, que o Enem cobra todo ano e essa prova é principal forma de entrar nas Universidades brasileiras.
Sei que não é simples seguir algumas orientações mas tentei criar esse texto embasado nos estudos científicos que pesquisam tudo isso e tentei adaptar para uso com os alunos mais pobres e para uso de famílias mais pobres.
O mais importante agora é estarmos bem emocionalmente para passar por tudo isso que o mundo vem enfrentando. Se quiser, pode entrar em contato comigo pelas redes sociais e vamos trocar uma ideia sobre tudo isso; quero saber de você como tem sido viver essa quarentena e seus impactos, sobretudo na educação (de seus alunos e de seus filhos) e, se for o caso, como posso te ajudar? Por último mas não menos importante: #AdiaENEM.