O Dia Nacional do Samba foi comemorado no dia 2 de dezembro e o ritmo é um território fértil onde direitos sociais florescem para a comunidade preta e favelada desde o seu primeiro acorde. Democrático e acessível, o ritmo mantém suas raízes firmes no chão de terra batida, nas ruas e nos becos. No entanto, onde está a presença feminina nas rodas, nos batuques? É impossível tocar ou falar de samba sem reverenciar as matriarcas que o gestaram e o nutriram: no fundo do quintal da Casa da Tia Ciata, na Casa da Dona Esther e em tantas outras lideranças baianas. Essas mulheres, guardiãs dos saberes africanos, mães de santo e ialorixás respeitadas, são a berço da biblioteca do samba.
Cadê as vozes femininas? Foi criada este ano uma lei que celebra o Dia Nacional da Mulher Sambista, comemorado em 13 de abril, em homenagem à compositora, intérprete e cantora Dona Ivone Lara. Pioneira instrumentalista no gênero musical, ela foi de tudo um pouco, não apenas no samba, mas também em diversos segmentos, como o assistencialismo social e a enfermagem, atuando ao lado da psiquiatra Nise da Silveira. Na época, suas composições eram assinadas por seu primo, Mestre Fuleiro, porque nenhum sambista aceitava gravar obras com uma mulher. “Devagar e miudinho”, Dona Ivone se tornou a primeira compositora de samba-enredo com ‘”Os Cinco Bailes da História do Rio”, apresentado pelo Império Serrano em 1965. Sua relação com a música é longa e começou aos 12 anos de idade quando compôs sua canção primeira obra “Tiê-tiê”, sobre seu pássaro favorito.
Tem que ser muito mulher e mais mulher ainda quando se é lésbica. Estamos falando de Leci Brandão, primeira cantora brasileira que em 1978 se assumiu lésbica e fala abertamente sobre sua sexualidade. Aos 72 anos, realiza shows e na política, atua como deputada estadual (PCdoB) em São Paulo. É madrinha do Bloco Afro Ilú Obá De Min, composto unicamente de mulheres. Leci Brandão foi a primeira mulher a compor um samba para a Mangueira na década de 1970, abrindo caminhos para outras mulheres sambistas. Sua voz reverbere em defesa das minorias, do povo negro, das mulheres e dos trabalhadores. Entre suas muitas obras marcantes, destaca-se “Zé do Caroço”, um dos maiores sucessos de sua trajetória, que retrata com sensibilidade as lutas e o protagonismo de uma liderança comunitária para todo o morro.
E quem nunca ouviu o clássico, “Eu não sou daqui (Marinheiro só) Eu não tenho amor (Marinheiro só) Eu sou da bahia (Marinheiro só) De são salvador”? Mais uma voz feminina que mora no nosso imaginário, a Rainha da Ginga, Clementina de Jesus, dona das cantigas que bebem as melodias do jongo, do lundu, os pontos de umbanda e das rodas de coco. Começou sua carreira aos 63 anos, conhecida também como “Quelé”, com um timbre e presença inigualável, gravou diversas canções e ficou conhecida por sua voz e elo com sua ancestralidade presente em cada acorde.
E se tu nunca ouviu essa aqui na roda de samba, esquece! Não estamos falando a mesma língua. “Logo eu com meu sorriso aberto/ o paraíso perto, pra vida melhorar/ malandro desse tipo que balança mas não cai/ de qualquer jeito vai/ ficar bem mais legal/pra nivelar/ a vida em alto astral” Dona de uma voz rouca, Jovelina desenhou seu caminho firme no terreno fértil cultivado por Clementina de Jesus, de quem muitos acreditam que herdou o estilo. Jovelina, conhecida como Pérola Negra pelo tom retinto e brilhante de sua pele, cantava as mazelas da vida e também, o orgulho de ser negra. Atuava como empregada doméstica antes de se dedicar à musica. Sua estreia foi aos 40 anos. Ao longo de sua carreira, lançou seis discos marcantes, incluindo “Sorriso Aberto” (1988), “Sangue Bom” (1991) e “Vou da Fé” (1993), este último premiado com disco de platina.
As vozes femininas no samba mudam a cadência, reafirmando o que ele sempre foi: um espaço para todos. Seja nas letras, nas comidas, no balanço ou, principalmente, conduzindo o partido-alto, o samba sempre contou com mãos, sorrisos e presenças femininas. A mulher negra é identidade e o ponto de encontro de um bom samba.