OPINIÃO – Quando o “sucesso” vira tragédia: reflexões sobre a operação policial no Complexo do Alemão e da Penha

Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Mais uma vez, o Complexo do Alemão e da Penha se tornam palco de uma tragédia anunciada. Durante mais de 15 horas, uma operação policial tomou as ruas das favelas, deixando atrás de si um rastro de destruição, dor e revolta. Apesar de ser considerada um “sucesso” pelas autoridades, o saldo para os moradores foi desolador: inocentes baleados, vidas perdidas e prejuízos materiais irreparáveis.

A narrativa oficial celebra a apreensão de armas e drogas, mas ignora o verdadeiro impacto dessa operação. Para quem vive nas favelas, o “sucesso” anunciado soa como uma ofensa à realidade. O que realmente aconteceu foi uma sucessão de abusos e um flagrante desrespeito à vida e ao cotidiano de quem mora ali. Quando uma operação policial deixa corpos pelo caminho e transforma a rotina de trabalhadores em um inferno, é preciso questionar: a quem esse “sucesso” realmente serve?

Pessoa ferida durante a megaoperação Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

Os moradores das favelas já convivem com a constante presença do medo. Não é de hoje que as ações policiais nesses territórios ignoram os direitos básicos de quem vive ali, sobretudo da população negra, que é a maioria nesses espaços e principal alvo de ações violentas. Durante a operação, relatos de moradores baleados dentro de suas próprias casas e de comerciantes que tiveram seus estabelecimentos destruídos vieram à tona. Além disso, há o impacto invisível, mas devastador, na saúde mental de quem vive nesse contexto.

Crianças negras, desde cedo, são expostas a traumas que vão moldando sua forma de enxergar o mundo. Para as crianças atípicas, como as que possuem transtorno do espectro autista (TEA) ou outras condições neurodivergentes, o barulho das balas, helicópteros e o clima de tensão podem desencadear crises intensas e gerar impactos duradouros. Para as famílias, lidar com essas situações em meio ao caos da violência policial é uma luta solitária. A saúde mental da população é constantemente desestabilizada, criando um ciclo de sofrimento que dificilmente é tratado, já que os serviços de saúde mental são escassos ou inexistentes nas favelas.

Além disso, é impossível ignorar o impacto econômico. Pequenos comerciantes, que já enfrentam dificuldades diárias para manter seus negócios em pé, foram duramente afetados. Portas fechadas, mercadorias perdidas e a incerteza sobre o futuro são apenas algumas das consequências diretas. Quem vai arcar com esse prejuízo? Certamente não serão as autoridades que celebram o “sucesso” da operação em entrevistas.

É urgente repensar o modelo de segurança pública adotado no Rio de Janeiro e em tantas outras cidades do Brasil. Operações como essa não apenas falham em combater as verdadeiras raízes da violência – como desigualdade social, racismo estrutural, falta de oportunidades e ausência do Estado nas favelas –, mas também aprofundam o abismo entre os moradores e as instituições que deveriam protegê-los.

O Complexo do Alemão e da Penha não precisam de mais operações truculentas. Precisam de investimento em educação, saúde, cultura e geração de emprego. Precisam de uma política que enxergue os moradores como cidadãos de direitos e não como alvos.

Enquanto as autoridades continuarem tratando a violência como espetáculo e as favelas como territórios de guerra, o “sucesso” das operações continuará sendo construído às custas de sangue, dor e miséria. E isso não pode mais ser aceito.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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