Apesar da vitória nas últimas eleições presidenciais, o campo progressista não é majoritário. Vimos o líder político com maior expressão dos últimos 30 anos desde a redemocratização vencer por uma diferença de 2,1%. Isto é, aproximadamente 200 mil pessoas; uma diferença muito pequena que, inclusive, durante o período de campanha diminuía a cada semana. Para compreender o cenário atual, é necessário elencarmos algumas importantes e necessárias observações sobre a encruzilhada da política brasileira.
É preciso reconhecer os esforços do governo de fortalecer sua imagem pública, repercussão e até os investimentos empreendidos no orçamento – com anúncios inéditos, ampliação de programas, novos tetos de gasto, aumento nas emendas parlamentares e até dos fundos partidários. No entanto, apesar deste conjunto de ações, infelizmente, para além da infraestrutura do governo, não temos visto uma organização política das políticas públicas implementadas: não se vê associações de moradores acompanhando as milhares de famílias ou espaços de diálogos e escuta com famílias beneficiadas pelo Bolsa Família por estado, entre outras formas de se criar canal de comunicação, diálogo ou outras possíveis e potentes experiências de democracia participativa.
O que quero chamar atenção é sobre o parâmetro de medir força política, pois a forma que o campo progressista tem se relacionado com a população tem sido motivo de reações de surpresa diante dos resultados das urnas; é preciso se relacionar não só no online, mas também na vida offline, do cotidiano.
A dinâmica social exige interação entre as partes; neste sentido, a vida política também exige a manutenção de um elo e, no caso do nosso atual contexto político, trata-se da reconstrução do tecido social a partir das suas particularidades. Diferente da década de 1980, a dinâmica atual não se resume aos sindicatos. Inclusive, os mesmos estão enfraquecidos e a informalidade tem se tornado padrão como modo de trabalho. É necessário ir além, interagir continuamente com outros grupos até então não considerados, como o de religiosos, estudantes, educadores, principalmente os da educação básica e não só os das universidades. Em resumo, é preciso estar no bairro, na rua, nos grupos sociais, onde a vida de fato acontece e há trocas de confiança e interações que fazem parte da construção do sujeito: nos territórios.
Assim, não adianta concentrar os esforços em obter vitória em uma figura: a presidência. É preciso se atentar na renovação como um todo: a de novos vereadores e executivos locais, isto é, das cidades. É fundamental reinventar fórmulas, práticas, processos e respostas coletivas para as necessidades da população que vive, em sua maioria, nos contextos de periferias urbanas. Inclusive, apostando no fortalecimento de novas lideranças comunitárias como lideranças também políticas, com expressão de voto e com solidez em suas trajetórias.
É comum ver algumas figuras desdenhando do trabalho local – eu mesma já escutei “é local? Precisa ser nacional para ter impacto” – um grande engano, pois é a base que garante a manutenção de um campo. Me gera uma angústia e preocupação a adoção desse olhar, pois foi através das experiências locais que muitas mudanças estruturais se iniciaram. A implementação da merenda nas escolas acontece a partir de uma experiência local, quando Armanda Álvaro Alberto fundou a primeira escola na América Latina a servir merenda, anterior à Escola Nova (1930) e até dos próprios CIEPs, com horários integrais, de criança ao Ensino Médio e formação complementar.
Os territórios abrigam um número expressivo de projetos comunitários, que realizam desde complemento escolar, que é extremamente necessário, pois a pandemia de Covid-19 alargou consideravelmente a desigualdade educacional entre ricos e pobres, até outras necessidades urgentes da população. Nos atendo ao quadro da educação básica, vamos observar uma crise instaurada; a evasão aumentou 171%, isto é, passou de 900 mil para 2,4 milhões, cujo 44% da evasão são jovens negros. Destaco os dados relativos à educação, pois esse é um tema chave para os brasileiros e afeta de forma visceral, sobretudo a população mais pobre.
Mas podemos também elencar a urgência do tema do saneamento básico, da coleta e tratamento de esgoto. É urgente que as pessoas parem de perder tudo anualmente nas enchentes pela ausência de infraestrutura do Estado, que parem de ficar sem água por dias, que não acordem com dragas derrubando o teto com remoções inapropriadas, que não tenhamos nenhuma criança a menos na escola ou assassinada brincando na porta de casa, que nossos jovens tenham direito de estudar e tenham perspectiva de vida. Que respeitem as religiões que alimentam a fé do povo por dias melhores. Parece simplista, mas são essas questões básicas que ainda pulsam no local, mas que possuem conexão com objetivos globais.
É preciso imaginar e propor a partir da realidade, visando acúmulo de força e potencializar a agenda de combate às desigualdades, efetivação dos direitos básicos e a reconstrução do tecido social. Assim, precisamos de união não só nas eleições de 2022, que enfrentaram Bolsonaro, mas pelas próximas décadas para lidarmos com os desafios do século XXI, com enraizamento territorial, (re)criar mecanismos de participação social e não somente ações emergenciais, mas formular processos que possam se estabelecer a longo prazo, pressionando a criação ou aprimoramento de políticas públicas. Isto é, proposições locais em sua amplitude nacional.
Juliana Garcia
Diretora do Instituto Nós em Movimento e estudante de Ciências Sociais (UERJ)