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OPINIÃO – Parece que o Brasil ainda não entendeu a gravidade dos confrontos no Rio de Janeiro

Foto: Voz das Comunidades
Foto: Voz das Comunidades

Uma cidade de meio milhão de habitantes teve seu centro comercial fechado por ordem de criminosos. Serviços básicos em favelas cariocas ficaram paralisados mais uma vez. Não dá pra normalizar que milhares de vidas são diretamente impactadas por isso.

O que há de errado com uma sociedade que não confia o suficiente nas forças de segurança para defendê-la, a ponto de preferir fechar suas portas ao invés de acreditar que a polícia seja capaz de garantir a lei e a ordem?

A relação do cidadão comum com a Polícia Militar, pelo menos no Rio de Janeiro, é no mínimo confusa. Não é raro ouvir histórias de policiais guerreiros na defesa do cidadão, mas também não é raro ouvir histórias de corrupção e violência.

A metrópole carioca é um caldeirão surreal da realidade onde o crime convive com a ordem, mas quando esse esquema sai do combinado, acaba sobrando até pra gatinha dentro de casa acertado por uma bala que de perdida não tem nada.

Só em 2023, a Baixada Fluminense teve 640 tiroteios. A disputa de alguns territórios não era uma realidade há até, acredite, poucos anos atrás. Não é difícil encontrar barricadas em bairros que nunca souberam o que era a violência. Agora se tornou comum moradores se queixarem da relação difícil com novos criminosos nos bairros – “antigamente eles pelo menos respeitavam a gente, alguns até ajudavam a carregar uma bolsa de mercado”, diz qualquer morador do subúrbio.

Na manhã de quarta-feira (27/02), o trânsito no viaduto do Jardim Meriti estava insuportável. Um engarrafamento fora do comum fechava as ruas de acesso do bairro, enquanto a Dutra fluía tranquilamente. O motivo da lentidão era a cena do crime que aconteceu naquele mesmo dia, às 1h da manhã, após uma intensa troca de tiros. Disparos de fuzil foram ouvidos a 1km de distância: a Polícia Militar perseguiu um veículo com quatro homens fortemente armados e os levou a óbito.

No entorno do engarrafamento funciona o Hospital da Mulher, que é crucial especialmente em partos complicados. A Avenida Automóvel Clube se tornou um caminho importante para ambulâncias que trazem a esperança de novas vidas, mas naquela manhã essa via estava inviável.

O reflexo não foi só no trânsito: os lojistas do Centro de São João de Meriti fecharam as portas. Ainda era possível ver algumas viaturas na região, mas isso não foi suficiente para evitar que todos os comerciantes aderissem à ordem de fechamento.

Conversando com comerciantes que não quiseram se identificar, todos sinalizaram que tinham medo de represálias futuras caso não fechassem. Não custaria muito para uma loja ‘rebelde’ começar a sofrer muitos furtos e depredações. Fim de expediente.

Na sexta-feira (01/03) ainda dava para perceber o Centro de São João de Meriti mais vazio. Algumas lojas resolveram seguir fechadas até semana que vem. Conversando com alguns populares, ouve-se que o policiamento sumiu na tarde de terça e até agora não voltou da forma que havia sido divulgado na imprensa.

Engana-se quem pensa que isso só traz transtorno aos donos de comércio. O Centro de São João de Meriti oferece muitos serviços, como clínicas de baixo custo, supermercados, açougues, peixarias, produtos de informática e consumo… Um tanto de gente que organiza a vida em cima da agenda, tinha exame marcado, tinha que comprar a mistura pro almoço e janta, ou simplesmente uma roupa nova pro casamento no fim de semana – porque até esses direitos simples acabam sendo negados ou pelo menos dificultados pra quem mora do lado de cá da Linha Vermelha.

Não foi só o fluxo em São João de Meriti que sofreu os efeitos da quarta-feira violenta. No Complexo do Alemão, a Estrada do Itararé e Avenida Itaoca foram bloqueadas por agentes militares às 5h da manhã e só foram reabertas às 15h.

Por causa da megaoperação da polícia militar, escolas foram fechadas. E isso não afeta só a educação das crianças: existem famílias que contam com o serviço da escola para cuidarem de suas crianças, inclusive no campo da alimentação, enquanto seus pais vão trabalhar.

Não é de hoje que as favelas sofrem os efeitos dos tiroteios. Na semana passada, o Voz das Comunidades noticiava que até a Avenida Brasil havia sido paralisada, além do serviço de trens também, após uma operação entre Cidade Alta e Parada de Lucas.

Olhando num plano geral, um tiroteio não é um assunto simples. Não pode, ou pelo menos não deveria ser encarado como a imagem de alguém baleado e ‘mais um CPF cancelado’. Um tiroteio tem reflexos de curto e longo prazo:

  • A ambulância que não chega a tempo no hospital porque está presa no engarrafamento;
  • Crianças sem aula;
  • O posto de saúde sem atendimento (apesar que às vezes mesmo sem tiroteio, bom, enfim…);
  • A família sem estrutura para mudar sua rotina de uma hora para outra;
  • Fluxo de pessoas impedido;
  • Comércio fechado, causando prejuízos que podem desdobrar até em desemprego.

Além de tudo isso, fica o medo. Quando vai acontecer o próximo disparo? Onde se esconder? O que fazer?

A criança que perde aula hoje vai ser o médico que vai cuidar de você amanhã. Vai ser o policial que vai te proteger. Vai ser um monte de coisas que não deveriam ter limites nem nos sonhos. Mas num cenário violento como esse, não há ambiente saudável para esses sonhos se realizarem.

Nesse ritmo, o carioca segue cozinhando dentro do caldeirão da surrealidade.

Ainda bem que aquele gatinho ainda tem mais seis vidas.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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