“A noite não adormece nos olhos das mulheres – Conceição Evaristo”
Quem mandou matar Marielle e Anderson e por quê? É o que todos nós estamos questionando, ou deveríamos estar, há muito tempo. Completam 3 anos do assassinato de uma mulher, eleita vereadora da Câmara do Rio de Janeiro em 2016, com 46. 502 votos, e o trabalhador, pai de família, que muitas pessoas e veículos de informação só lembram dele como motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes. No entanto, até esse presente momento, não obtivemos nenhuma resposta concreta.
O Brasil é um país que, desde a colonização europeia, construiu suas relações por meio da violência simbólica e física. Povos originários foram enganados, objetificados, animalizados, desumanizados, para, depois, serem dizimados. Em seguida, pessoas, homens e mulheres, foram arrancados à força de suas terras, de seus lares, de suas próprias relações, de suas culturas, costumes, crenças, para aqui serem transformados em coisa, objeto, produto, explorando-os até o esgotamento. Esses, milhões de vários países da África, também foram vitimados pela crueldade “civilizatória” do homem branco europeu, em nome do capital, da fé e do progresso. Com isso, quero dizer que a vida de populações racializadas, ou seja, que tiveram suas identidades étnicas construídas pelo outro não por si mesmos, teve diversos conflitos nas relações políticas, econômicas e sociais, que refletem até os dias atuais.
Marielle era uma mulher negra, cria da Maré, mãe de uma menina negra e filha de uma mãe, também negra. Essas marcações em uma país como o Brasil, estruturado não somente a partir, porque também houve muita luta e resistência, mas que teve grandes efeitos que moldaram as nossas relações – devido à colonização e escravização de corpos indígenas, negros-africanos -, expressam como a sociedade nos enxerga e em que lugares somos colocados.
O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar, marginalizar e desumanizar, pessoas não brancas. Isso significa dizer que nossa cor de pele determina se merecemos viver ou se merecemos morrer. Não aprendemos isso em casa, na escola, na rua ou no trabalho. É na vida. Quem mora na favela, sabe que a maioria dos que morrem, vítimas do fuzil do estado, são negros. Podem ser colegas, amigos ou até familiares. Marielle sabia disso, mas antes de saber, perdeu uma amiga num tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão. Depois disso, sua militância iniciou, ainda que na dor, em Direitos Humanos, após ingressar num pré-vestibular comunitário, espaço que abriu portas para conhecer a si e a sua realidade.
Infelizmente não cheguei a conhecê-la pessoalmente. Entrei na faculdade (UFRJ) em 2014, localizada no Fundão, do lado da Maré. Em 2016, ela se tornou vereadora. Lembro que, quando comecei a estudar mais sobre questões étnico-raciais, quando me entendi enquanto homem negro, passei a saber a respeito das personalidades políticas de grande importância, como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, Abdias Nascimento e ela, Marielle Franco. Cada discurso dela, que eu assistia, todo meu corpo se arrepiava. A maneira como ela se colocava nos lugares, como falava dos Direitos Humanos, das mulheres, dos negros, dos LGBTQI+, injetava-me sensações variadas, dentre elas a vontade de lutar por essas causas também. “Não serei interrompida! Não aturarei interrompimento de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita.” Toda vez que ouço esse discurso, não consigo conter a emoção. Mas, também me traz ainda mais sede por justiça. Que justiça? Essa, desde o início, não foi feita para nós.
Depois de todos esses anos, das idas e vindas das investigações, não encontrando quem realmente mandou matar Marielle e Anderson, o que eu desejo, mais do que tudo, é que os culpados sejam encontrados e responsabilizados pelo crime que cometeram. Queria, porém, não acredito na justiça do homem. Creio na do meu pai Xangô que, mais cedo ou mais tarde, vai se executar. Eles tentaram apagá-la da história. Acharam que o caminho estaria aberto para eles, a partir disso. Com seu assassinato, acreditaram mesmo que estariam livres de uma mulher negra, aguerrida, corajosa e humana, características que eles nunca tiveram. Ela sabia que, como falou Angela Davis, quando uma mulher se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta também. E, foi o que fez. Por isso, esteve onde ocupou, e a tiraram de lá.
Hoje, Marielle Franco é um pensamento, um legado, símbolo de luta… e ideias, nem com a força do tempo, conseguem apagar. Há décadas o povo negro existe e resiste. Tal qual como o sol, renascemos, todos os os dias, mais intenso, mais forte, nos despertando para a luta que ainda está longe de terminar. Marielle, presente! Hoje e para sempre!
Jonas di Andrade é morador da Cidade de Deus, ativista, professor de português e literaturas, graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escritor e colunista do portal do Voz das Comunidades.