OPINIÃO | Desmonte cultural: o despejo da Escola de Cinema Darcy Ribeiro e o acesso ao cinema nas favelas e no subúrbio

"Precisamos continuar ocupando o audiovisual brasileiro com roteiristas, cineastas, produtores e atores da favela e do subúrbio"

Muitos jovens sonham em trabalhar com audiovisual. Em um passado não tão distante era quase impossível você conhecer alguém que morasse na favela ou no subúrbio e trabalhasse com entretenimento. Isso era coisa de Zona Sul. Felizmente esse cenário vem mudando. Pois, cada vez mais estamos conseguindo ocupar as produtoras e emissoras de TV.

No entanto, o despejo da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, patrimônio histórico e cultural do estado, um dos grandes centros de referência na formação e produção audiovisual brasileira, é mais um golpe, por meio do desmonte cultural, que esse governo vem realizando. Não só em nível federal, mas também estadual e municipal. Em verdade, já acontece há muito tempo. E, talvez você nem tenha percebido.

Quem é carioca, ou mora no Rio de Janeiro há algum tempo, já deve ter ouvido histórias dos famosos cinemas de rua. A Cinelândia não tem esse nome por acaso. 13 cinemas já passaram por lá. Hoje só restou o Odeon. O desaparecimento do cinema de rua é não só um enfraquecimento cultural trazido pela competição com shopping centers, como também significa alterações na arquitetura da cidade. Muitos cinemas foram tombados e abandonados, principalmente no subúrbio. Um dos bairros mais famosos do Rio, Bonsucesso, é considerado o centro da Zona Leopoldina, com muito comércio, duas universidades, opções de transporte e a movimentada Praça das Nações. Entretanto, ficou sem salas de cinema por 25 anos. Até que em 2004 foi inaugurado o Microcine Bonsucesso, dedicado à exibição de filmes brasileiros, especialmente de temática negra e indígena.

Microcine é definido como um espaço cultural de encontro da comunidade. Todas as sessões eram gratuitas. Durante muito tempo foi a única opção de lazer dos moradores e estudantes da região, os quais podiam participar de debates e oficinas de audiovisual. Todo ano eram organizados os festivais “Mostra Cine Índio” e a “Mostra Olhos Negros”, ambas com oito edições. O primeiro filme com temática ambiental que assisti na vida foi lá, durante uma atividade escolar. Muitos alunos da área também tiveram a mesma experiência. No entanto, nos últimos anos, o Microcine Bonsucesso atravessou grave crise financeira em decorrência da falta de patrocínio da Prefeitura.

O cinema passou o ano de 2017 fechado e foi reaberto em 2018, inclusive ganhou reforma, por meio da parceria com a RioFilme, tornando o espaço um CineCarioca. O projeto deixou de ser focado em temáticas negras e indígenas e começou a exibir filmes internacionais. A RioFilme, em entrevista ao jornal “O Globo”, insinuou que a antiga programação “prejudicava a sustentabilidade financeira”. Por que temas tão importantes, como cinema negro e indígena, são tomados dos suburbanos e favelados com a “desculpa” de que falta patrocínio e interesse da prefeitura? 

Mesmo com a nova estratégia e preços populares (meia entrada R$5 e inteira R$10 ) a prefeitura deixou de patrocinar o cinema, que se tornou um bazar no final de dezembro de 2018. O espaço está fechado com a placa de “Aluga-se” há mais de um ano. Quando a iniciativa CineCarioca foi criada, prometia-se a diminuição no índice de habitantes por sala na Zona Norte do município. As duas salas são: o CineCarioca Nova Brasília, o primeiro cinema do Brasil a ser instalado dentro de uma favela, o qual estava em manutenção e não pode voltar ao funcionamento por causa da pandemia; a segunda o CineCarioca Méier, que reside dentro do reformado Imperator. Os outros 9 cinemas de rua ainda resistentes no Rio de Janeiro são localizados no eixo Zona Sul-Centro. 

O debate da democratização do acesso ao cinema no Brasil foi levantado pelo tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem 2019). Um dos exemplos de ação social que promove cultura, que foram citados pelos estudantes, é o “Cinema no Morro”, produzido pela parceria Voz das Comunidades e Konteiner. Em junho do ano passado mais de 300 jovens foram beneficiados.

Uma das missões do cinema, além de levar entretenimento, é formar senso crítico nos jovens. Quantas vezes seu pensamento mudou por conta de um filme? Cinema é reflexão. Um filme pode mudar uma vida. A minha mudou quando assisti “O que é Isso, Companheiro?” do Bruno Barreto na aula de História. Com certeza algum jovem do Complexo da Penha também tenha mudado seu pensamento quando assistiu Pantera Negra, naquela noite no Konteiner. 

A desocupação da Escola de Cinema faz parte do projeto do Governo Federal de privatização dos Correios. O objetivo da empresa é transformar o edifício onde a escola fica em sede estadual da estatal. Ao longo de duas décadas de atividades, a escola recebeu e capacitou mais de 10 mil alunos oriundos de todas as regiões do Brasil e de diferentes países do mundo, primando pela diversidade, pluralidade e pela interação colaborativa de alunos de diferentes origens e classes sociais – tendo como princípio a democratização ao acesso à formação audiovisual, oferecendo cursos gratuitos com reserva de vagas para alunos de ONGs, bem como estudantes que pagam um valor através de matrícula subsidiada -.

O audiovisual fatura R$ 55, 4 bilhões no país e R$ 2, 7 bilhões em arrecadação de impostos. Só no Rio de Janeiro são 11 mil trabalhadores na área. Mas a pergunta que cabe é agora é seguinte: Qual e como será o futuro pós-pandemia?

Precisamos continuar ocupando o audiovisual brasileiro com roteiristas, cineastas, produtores e atores da favela e do subúrbio. Cultura é instrumento de transformação social e é necessária para nossa sociedade. Fomentar a cultura é contribuir com o desenvolvimento social. Podem passar mil anos e todos os tipos de governo, a cultura sempre permanece. Como diz a frase do educador que leva seu nome na escola de cinema: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca.”

#FicaDarcy

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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