O resgate das pipas na favela: isolamento social faz com que pipeiros retornem à ativa

Crianças, adolescentes e jovens resolveram utilizar a pipa como forma de passar o tempo livre

Ilustração: Douglas Lopes (@illustradoug)

A sensação é de que o céu das favelas e periferias do Rio de Janeiro nunca esteve tão colorido quanto agora, em meio a pandemia de covid-19. Devido ao isolamento social, muitas crianças, adolescentes e jovens resolveram utilizar a pipa como forma de passar o tempo livre, que está bem maior que o normal. “As vendas aumentaram muito. Mais de 100 por centro. Na verdade, eu tinha parado de confeccionar e vender pipas. Voltei em consequência à atual situação que estamos, e a demanda que surgiu”. Essas são afirmações do pipeiro Renato Alves, morador da Rocinha.

Confeccionar pipas é uma arte milenar, ofício ao qual Renato Alves, de 41 anos, se dedica há mais de duas décadas. Mas o pipeiro vinha se afastando de sua atividade preferida por falta de interesse em seu produto, que estava cada vez maior. “Esse trabalho é minha grande paixão. Parei de vender pipa por um tempo. Por um período, passei a vender roupas pois antes da pandemia, o entusiasmo por soltar pipa vinha caindo gradativamente. Assim como por bola de gude, pião, elástico… Essas brincadeiras de antigamente. Até devido ao crescimento urbano – por não ter o espaço adequado para as crianças brincarem – aumento da tecnologia e aumento da violência, claro. As crianças não pensavam mais nessas atividade nem eram estimuladas a pensar mais”.

Para Renato, a violência foi realmente um fator definidor na escolha dos jovens e seus responsáveis por não soltar mais pipas. “Às vezes, os pais, com medo de ver o filho na laje no meio de um tiroteio, preferiram dar um celular do que vê-lo brincar na rua. Mas com essa pandemia, acredito eu, as crianças enjoaram de ficarem só no celular. E acabaram voltando para as raízes. É uma forma de se distrair, sair de casa sem sair de casa”.

Renato deixa sua marca em todas as pipas que vende. Foto: arquivo

A confecção de pipas tem ajudado Renato nas contas de casa. Mas ele confessa que tem sido difícil manter a produção e atender a clientela pois até o material tem estado em falta nos centros de distribuição. “Tenho feito pipa como um complemento à minha renda. Mas esse trabalho se tornou a principal atividade de muita gente, principalmente agora. No Mercadão de Madureira, que é onde compramos o material, as coisas estão em falta. Quando há material, tem cota para comprar, virou uma fonte de renda, a demanda aumentou muito e os fornecedores não acompanharam”.

Justamente como muitas pessoas neste momento, o pipeiro começou neste ofício quando ficou sem trabalho. “Eu comecei a vender pipa quando perdi meu emprego. Eu sempre trabalhei com vendas. Já vendi sorvete, salgado… Tenho amor por pipa desde criança, então juntei o útil ao agradável. Eu estudava e conseguia conciliar a pipa, quando eu estava na escola minha mãe vendia para mim. Foi um dos maiores pipeiros da Rocinha, o Kiera, que me ensinou a fazer pipas, ele vive apenas disso, inclusive. Ele quem me ensinou tudo, o passo a passo de como ser pipeiro”.

“Hoje em dia, é minha esposa quem vende as pipas para mim, em casa mesmo. Além de um amigo que tem uma lojinha na beira da rua, aqui na Rocinha, e também faz a revenda. Soltar pipa é uma distração, uma forma de esquecer dos problemas, ficar tranquilo…Pelo menos pra mim, é isso”. Conta o pipeiro que agora, também partindo da demanda, vende máscaras de proteção. 

Adolescentes recorrem à pipa para se distraírem

Diego Rodrigues, de 16 anos, está aproveitando o período de isolamento social para retomar uma atividade que encantava quando criança: empinar pipa. Como o que foi defendido por Renato, o celular não foi o suficiente, e os adolescentes foram em busca do que fazer com tanto tempo livre. “Eu gosto de pipa desde moleque, e é uma coisa que a gente pode fazer, sem sair de casa. Além disso, distrai muito, o tempo passa e a gente nem vê”.

Diego aproveita a quarentena para soltar pipas da sua laje, no Complexo do Alemão. Foto: reprodução

O adolescente, que é morador do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, diz ainda que tem consciência dos perigos que envolvem a atividade e diz que toma todos os cuidados, mas admite que usa cerol. “Nunca sofri nenhum acidente, nem nunca vi nada acontecer com amigos meus, mas sei que o perigo existe. Às vezes, eu uso cerol, mas sei que não pode, que pode machucar alguém”.

O perigo das pipas vai além o cerol, que é proibido por lei, a Light, empresa responsável pelo fornecimento de energia elétrica no Rio de Janeiro, relatou que casos de pipa em rede elétrica dobraram durante pandemia. O número de clientes que tiveram o serviço interrompido no mês de março mais do que triplicou quando comparado com o mesmo período no ano passado. O número de clientes que ficaram sem luz por causa de pipas agarradas nos cabos de energia saltou de 5,6 mil pessoas para 20 mil clientes.

O aumento de pipas no céu é real. A brincadeira está sendo retomada e a memória, assim como as raízes desta atividade que já foi tão significativa e representativa, está sendo resgatada. A diversão é válida mas o importante é brincar com responsabilidade e segurança.

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EDITORIAS

PERFIL

Rene Silva

Fundou o jornal Voz das Comunidades no Complexo do Alemão aos 11 anos de idade, um dos maiores veículos de comunicação das favelas cariocas. Trabalhou como roteirista em “Malhação Conectados” em 2011, na novela Salve Jorge em 2012, um dos brasileiros importantes no carregamento da tocha olímpica de Londres 2012, e em 2013 foi consultor do programa Esquenta. Palestrou em Harvard em 2013, contando a experiência de usar o twitter como plataforma de comunicação entre a favela e o poder público. Recebeu o Prêmio Mundial da Juventude, na Índia. Recentemente, foi nomeado como 1 dos 100 negros mais influentes do mundo, pelo trabalho desenvolvido no Brasil, Forbes under 30 e carioca do ano 2020. Diretor e captador de recursos da ONG.

 

 

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