“As religiões de matriz africana são matriarcais” é o que afirma a Ekedy Michele de Oxum como é conhecida na nação Omolokô a líder religiosa, Michele Seixas, de 38 anos, moradora do Complexo do Alemão, próximo ao morro do Adeus onde é cria. Nos terreiros, assim como nas favelas e em todo o Brasil, elas são maioria. Nas histórias dos Orixás, nos itãs, são as protagonistas. As Yabás, mães d’água, vencem a guerra com e sem espadas em mãos. Debatem política, exercem mais do que a função de mãe e esposa, elas são também as lideranças. Entretanto, o espaço das religiões afrodescendentes e das matriarcas vêm sendo disputado na cidade.
Neste dia 21 de março, comemoramos o Dia Nacional das Tradições de Raízes Africanas e Nações de Candomblé. O Dia do Candomblé, como é popularmente chamado, foi decretado pelo presidente Lula. A proposta de lei é de autoria do deputado Vicentinho (PT). A história da cidade do Rio é marcada por sangue, suor e a força do trabalho negro, população que é maioria na cidade. De acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022, cerca de 3,4 milhões de pessoas no Rio de Janeiro são negras ou pardas, (54,3%). O número é superior ao de pessoas brancas que representam aproximadamente 45,4% da população, que, em números, são 2,5 milhões de habitantes da cidade.
”Nossa vida se entrelaça entre cultura e religião, mas o Rio de Janeiro é uma cidade muito complicada de vivenciar o que é ser uma mulher de matriz africana”, desabafa Ekedy Michele D’Oxum. Desde criança ela vive o axé, onde foi criada por sua família e exerce o cargo Ekédy há dez anos, que é a zeladora do Orixá, importante dentro nos terreiros com a função principal de cuidar dos santos. Mas ela conta que com o passar do tempo os homens foram ocupando o espaço de liderança nas casas de santo. “O machismo afeta muito a nossa religião, o colonialismo vem apagando as mulheres das tradições africanas […] hoje em dia os homens mandam e as mulheres quase não falam”, ressalta. Além do machismo, o racismo religioso é outra consequência da diáspora, ou seja, do deslocamento forçado de pessoas negras para o Brasil.
O Omolokô é uma religião que reúne ritos e simbologia com origem no Banto. Foi criado por uma africana escravizada, a Maria Batayo de Nanã, mas segundo mãe Michele explica, a história da religião é atribuída a Tata Tancredo. Para o Babalorixá (pai de santo), Alex de Yemanjá, de 34 anos, estudante de história, candomblecista iniciado no culto aos Orixás há 13 anos, a relação das religiões de matriz africana com a cidade ainda não é ideal. Ele conta que a maioria dos seus filhos de santo são moradores do CPX e que têm que se adaptar para poder viver a fé. Ele explica ainda que entre subidas e descidas no morro, sente que vem rompendo o preconceito. “Temos que quebrar o preconceito e mostrar que não é aquela imagem negativa que as pessoas tem”. Pai Alex explica que, assim como as favelas, muitos terreiros também nasceram nos altos dos morros, “O negro precisou subir nos morros para poder criar seus templos e cultuar os Orixás”, afirma.
Alex diz que o Candomblé se firmou no Rio de Janeiro após a “abolição da escravatura” onde os negros escravizados puderam viajar e reencontrar seus parentes, e saber o que estava sendo feito com a espiritualidade. Assim, o candomblé que nasceu na Bahia, chegou ao Rio de Janeiro. Lá é o berço e aqui a filial. Mãe Michele diz que esta data é importante para lembrar e reforçar a presença da matriz africana. Ela ainda acredita que há um longo caminho a ser percorrido, e que os terreiros devem se unir para juntos ocupar não apenas os espaços religiosos.
“O debate religioso tem que andar ao lado do político e fazer disputas de narrativas […] precisamos de algo que centralize e mapeie a nossa religião. É o que fazemos nas organizações sociais”. Uma das organizações que promove encontros entre adeptos dos variados cultos de matriz africana é a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), fundada em 2003, e que busca potencializar os saberes dos terreiros. Estes que são ancestrais, passados oralmente dos mais velhos para os mais novos, já que a religião é isso: Uma ligação com a ancestralidade.
A escritora Eliana Alves Cruz, no romance “Nada Digo de Ti que Em Ti Não Veja” conta uma história ambientada no século XVIII (século dezoito) narrando a história onde africanos escravizados vieram ao Brasil e foram obrigados a esconder ou negar suas raízes, tradições e crenças, fugir, tentar comprar sua liberdade. Histórias que foram vividas por pessoas africanas no porto da cidade e que emocionaram o Rei de Angola, Tchongolola Tchongonga-Ekuikui VI, que quando visitou o Brasil em novembro do ano passado, destacou que pessoas negras são “filhos de reis e rainhas da África” e que vivem em diáspora, ou seja, deslocamento forçado, pela escravidão. Esta é a história do Rio de Janeiro.