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A experiência de ser negra e favelada é dupla: quando habitamos só nosso território, o achamos completo, pois nos oferece aquilo de que precisamos pra viver. A solidariedade ativa, o “nós por nós”, a economia solidária são valores que crescem juntos conosco, ao entender a potência que é a favela por si só. A outra face da nossa experiência é quando circulamos em espaços institucionais e percebemos que a favela não tem uma experiência completa da liberdade e do bem-viver por causa da intervenção estatal, que é sempre performada através da omissão ou da violência.
O que seria da baía de Guanabara, que fica a dez minutos da minha casa, se o Estado cumprisse seu papel de fiscalização dos recursos hídricos? Como poderia ser o desenvolvimento das comunidades do entorno se elas tivessem uma fonte limpa e natural? Como seria o morro do Sapo ou a Mangueirinha, favelas em Duque de Caxias, se o Estado não as invadisse frequentemente, interrompendo atividades cotidianas para deixar corpos no chão?
Nossa disputa não é por algo novo. Nossa disputa é por manter o que já temos: o nosso território. Nele nos encontramos livres a andar pelas ruas, usar nossas roupas, ouvir nossas músicas, dançar nossos ritmos. A favela vai bem, obrigada. O que nós pleiteamos é a obrigação do Estado em criar oportunidades para que os nossos direitos fundamentais sejam exercidos em sua plenitude. Queremos todos aqueles descritos no artigo 6º da Constituição Federal —e deles não abrimos mão.
Se nos propomos a disputar o direito, a recorrer ao STF, é porque aprendemos com campanhas, como a do “Caveirão Não”, que não é fantasia pleitear que os instrumentos de morte não invadam nossas favelas e nossos territórios. É comemorar a vitória da ADPF 635, que proibiu o uso de helicópteros (caveirão aéreo) em operações policiais, mas permanecer atentos, pois sabemos que a estrutura genocida faz de tudo para continuar com seus planos de morte aos nossos —como tem achado exceção para a mesma ADPF, no que diz respeito às operações durante a pandemia.
Nós ocupamos essas estruturas pois sabemos que cada operação a menos são mais vidas poupadas e disputamos a narrativa dominante pois acreditamos numa sociedade que vai romper com o projeto de morte em “busca da nossa igual humanidade”, como afirma a professora Thula Pires. Nós ocupamos espaços, mas não para barganhar. Negociar com o que está posto significa ver mais camisas manchadas de sangue. Da infância à juventude, da Maré ao morro dos Macacos, de Marcus Vinicius a Caio Gabriel, as violações aos nossos direitos e a interrupção das nossas vidas não param.
Aprendemos com Vilma Reis que não somos mais um ponto preto no meio da festa. Chegamos aonde chegamos com muita estratégia das nossas mais velhas: do esforço de minha mãe Priscila, vó Nadyr e vó Penha, chego aqui viva. De Sueli Carneiro e Wania Santanna (na luta pelas cotas raciais), chego aqui —quase rs— formada. De Jurema Werneck e Lúcia Xavier, chego aqui como militante do movimento negro e aprendendo como enfrentaremos os desafios futuros colocados para nós: juventude negra e favelada.
Sei que hoje transito entre duas de diversas perspectivas de arrancar algo do futuro: a disputa do que já está posto e a criação de algo novo. Seja nos nossos projetos autônomos ou disputando os espaços dos quais fomos excluídos historicamente. Alguns caminhos já foram abertos, outros temos que desbravar. Mas estamos prontos para essa disputa.
Thuane Nascimento (Thux) é cria da Vila Operária, flamenguista e evangélica. Estudante de Direito da UFRJ, articuladora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Najup) Luiza Mahin, integrante do Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira FND/UFRJ, do Movimento Favelas na Luta e PerifaConnection.