Texto originalmente escrito para Folha de S. Paulo Por: Fabiana Silva e Claudia Cruz
“Para nós, a fala verdadeira não é somente uma expressão de poder criativo; é um ato de resistência, um gesto político que desafia políticas de dominação que nos conservam anônimos e mudos. Sendo assim, é um ato de coragem —e, como tal, representa uma ameaça. Para aqueles que exercem o poder opressivo, aquilo que é ameaçador deve ser necessariamente apagado, aniquilado e silenciado.” (Bell Hooks)
Começamos essa prosa com a certeza de sermos porta-vozes daquelas que foram silenciadas por meio de violências. Não queremos dar voz para quem sempre conseguiu gritar, mas, sim, ampliar o acesso desses gritos para além dos muros invisíveis de territórios vulneráveis.
Quando se trata de violência contra mulheres, sempre ouvimos falar da Lei Maria da Penha. Apesar de ser um marco na conquista do direito à proteção e ao cuidado, essa lei precisa ser oferecida junto de uma rede de apoio legal, assistencial, psicossocial e de diversos acolhimentos a essas vítimas.
Em favelas e periferias, vemos a dificuldade que mulheres vítimas de violência têm de acessar os serviços, determinados em lei, da rede de proteção social.
Em variadas situações, ao receber pedidos de socorro de mulheres vítimas de violência, há dificuldades e vários entraves para obter informações de canais oficiais que nos ajudem a saírem dessa situação.Além do medo de represálias do agressor, mulheres vítimas de violência que vivem em territórios mais vulneráveis não acessam os canais de denúncia por conta do histórico de descaso do poder público, identificado em muitos incidentes.
A falta de apoio é fruto, de forma recorrente, do preconceito instituído ao se declarar o local de moradia. Segundo relatos, quando o endereço é mencionado, há um silêncio do lado que deveria atendê-las. A falta de sucesso na busca por acolhimento resulta em sofrimento, frustração e sensação de desalento e abandono. Por meio da “janela” da ausência de direitos, muitas mulheres contemplam o anunciado término das suas vidas em um ciclo de violência.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre março e abril de 2020 houve um aumento de mais de 22% nos casos de feminicídio em 12 estados. Vale lembrar que as mulheres pretas e pardas, moradoras de favelas e periferias representam o grupo que mais morre por essa causa no Brasil. Dessas, 73% são pretas, de acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
O projeto Justiceiras, criado em plena pandemia, há um ano, para acolher mulheres que sofrem com violência, diagnosticou que a quantidade de denúncias dobrou nos últimos meses.
Infelizmente, o aumento dos casos de violência de gênero não é um fenômeno global que a ONU chamou de “pandemia às sombras”. Organismos internacionais, como a ActionAid e o Banco Mundial, também produziram estudos específicos sobre a violência em diversos países ao redor do mundo.
Diante desse cenário global, ficam as questões: Quais são os motivos para a repetição desses casos? O que leva uma vítima de violência se manter dentro desses relacionamentos abusivos, que muitas vezes têm tragédias anunciadas?
A resposta às perguntas colocadas é extremamente complexa, mas precisa ser repetida quando se aborda as questões das invisibilidades que atualizam discursos de que mulher gosta de apanhar. Não, não gostam!
Como muitas dessas relações se dão a partir da dependência financeira ou psicológica na relação com o agressor, a casa se tornou o lugar mais perigoso para mulheres e meninas durante o isolamento social. A violência de gênero não escolhe idade. Agressores escolhem vítimas.
Elas apanham muitas vezes por dependência financeira e emocional e por medo de saírem do relacionamento e verem os filhos sofrendo ou de morrerem devido às ameaças que chegam em forma de socos, sufocamento, chutes e outras agressões.
Falar sobre a violência nunca é fácil e muitas vezes o medo é atravessado pela agressividade do companheiro, pela falta de acolhimento e pela moradia em áreas onde o poder paralelo atua na ausência do Estado. E são esses grupos que “cuidam” dessa parte. Esse cuidado geralmente não caminha com as necessidades de apoio e cuidado que as vítimas precisam ter.
Entre os anos de 2015 e 2019, a agora extinta Secretaria da Mulher teve uma expressiva redução de recursos, passando de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões. No atual governo do presidente Bolsonaro, quem cuida das políticas da mulher é a polêmica ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, para quem a política do enfrentamento da violência contra a mulher passa pela criação de números de WhatsApp e Telegram. Em um país com mais de 14 milhões de desempregados, o acesso à internet e a um telefone celular se tornou um artigo de luxo, facilmente confiscado por um agressor.
O enfrentamento à violência contra a mulher demanda recursos e políticas públicas, equipamentos especializados como a Delegacia da Mulher, a Casa da Mulher Brasileira, além de abrigos para vítimas e apoio do SUS, do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Contra os agressores: cadeia. Para as mulheres: apoio, acolhimento, amparo e Justiça com dignidade. A mulher não gosta de apanhar. A mulher gosta de ter seus direitos respeitados.
Direitos esses que precisam ser assegurados independente do CEP. Não se faz um projeto de apoio e assistência sem que as faveladas, indígenas, ribeirinhas, quilombolas estejam presentes.
Encerramos essa prosa com a fala de uma dessas mulheres para quem o silêncio do outro lado da linha levou resultados negativos: “Eu fiquei chocada quando o namorado da filha da minha patroa bateu nela. Rapidinho a polícia chegou lá para separar a briga e ainda falam mansamente com ela. Quando fui eu que liguei e falei o meu endereço, ouvi silêncio. Tentei mais três vezes e, toda vez que falei o meu endereço, o silêncio gritava do outro lado. Desde esse dia, eu penso que se (a assistência) não é para todas, não é certo”.
Fabiana Silva
Pedagoga, mestranda em educação pela Uerj, idealizadora da ONG Apadrinhe um Sorriso e coordenadora de mobilização da Casa Fluminense
Claudia Cruz
Cientista política, especialista em avaliação de políticas públicas e coordenadora de informação da Casa Fluminense